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GARCIA, Melina Coelho; FURTADO FILHO, Emmanuel Teófilo. A concorrência no ambiente digital
e a necessidade de uma cooperação antitruste internacional: o digital markets act como
regulação paradigma? Revista de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 11, n. 2, p. 87-103, 2023.
https://doi.org/10.52896/rdc.v11i2.1043
Consiste a “multilateralidade” na presença, em uma mesma plataforma, de dois grupos de
“usuários”: de um lado, temos os usuários que se utilizam dos serviços ofertados pelas plataformas
de modo “gratuito”, isto é, sem que precisem dispor de qualquer quantia financeira para ter acesso
às redes sociais e aplicativos, mas fornecendo seus dados pessoais para que consigam aderir à
plataforma. Do outro lado, contudo, temos aqueles que financiam diretamente a plataforma ao pagar
certa quantia para, naquele espaço, anunciar seus próprios produtos e serviços, a partir dos perfis
de consumidores gerados pelos usuários que, gratuitamente, cederam seus dados à plataforma
(BUNDESKARTELLAMT; AUTORITÈ DE LA CONCURRENCE, 2016).
Cita-se como exemplo ilustrativo da multilateralidade a rede social Facebook, pertencente ao
grupo de mesmo nome, na qual usuários podem se cadastrar gratuitamente na plataforma, podendo
utilizar-se de seus serviços - jogos, eventos, chats de conversa - enquanto que anunciantes pagam
para exibir seus produtos no mesmo espaço.
Note-se, contudo, que o lado “gratuito” da plataforma é construído a partir de uma leitura
superficial daquilo que se considera “valor”. Conforme destacado pelo Fórum Econômico Mundial,
dados pessoais, na medida e velocidade com que podem ser coletados, armazenados, processados
e atualizados, representam hoje um importante ativo na economia mundial, permitindo a criação de
novas oportunidades de investimento para empresas e governos (WEF, 2011).
Por essa exata razão, pode-se afirmar que a aparente “gratuidade” de um dos lados das
plataformas digitais esconde a fundamental geração de valor a partir da variedade e quantidade de
dados fornecidos pelos usuários como condição para que a eles seja permitida a adesão aos serviços
e produtos oferecidos pelas plataformas.
A partir desse entendimento, pode-se compreender a segunda característica que se destaca
acerca das plataformas digitais: o amparo no uso de big data.
Consiste o termo “big data”, assim como os vários outros utilizados para se referir ao mercado
digital
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, em objeto de difícil conceituação, dada sua abstratividade e impossível tangibilidade.
Entretanto, pode-se apontar uma definição que apresenta maior pacificação na literatura, a qual
compreende big data não apenas como um elevado volume de dados reunidos, mas como insumo
construído a partir da coleta, armazenamento, processamento e atualização de dados caracterizados
pela variabilidade, volume e velocidade e que, uma vez reunidos e detidos, permitem a tomada de
decisão informada (MONTEIRO, 2017).
Caracterizam-se, portanto, as big techs, por modelos de negócios pautados na construção
de perfis cada vez mais específicos de seus usuários a partir da utilização dos dados fornecidos e
adquiridos, de modo que possam oferecer ao lado que “paga” pelo uso de suas plataformas potenciais
alvos de publicidade, que tenderão a ser atraídos com mais certeza aos anunciantes (BAGNOLI, 2021).
O acesso, de tal modo, a elevada quantidade e variedade de dados pessoais fez surgir - ou
intensificar - preocupações sobre a legitimidade com que as plataformas digitais se utilizam de tais
insumos para conduzir seus negócios, implicando maior atenção voltada não apenas para potenciais
práticas anticoncorrenciais, mas ainda no que tange à liberdade do consumidor e à proteção da
5 “Although Articles 101 and 102 of the Treaty on the Functioning of the European Union (TFEU) apply to the conduct of
gatekeepers, the scope of those provisions is limited to certain instances of market power, for example dominance on specific
markets and of anti-competitive behaviour, and enforcement occurs ex post [...]. Moreover, existing Union law does not address,
or does not address eectively, the challenges to the eective functioning of the internal market posed by the conduct of ga-
tekeepers that are not necessarily dominant in competition-law terms”.