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8
DESAFIOS REGULATÓRIOS
NO SETOR FINANCEIRO:
UMA ANÁLISE DAS
TRANSFORMAÇÕES
PROMOVIDAS POR
FINTECHS
NO MERCADO DE MEIOS DE
PAGAMENTO NO BRASIL
1
Regulatory challenges in the Financial Sector:
An assessment of transformations promoted
by ntechs in the Brazilian Payment Methods
market
Marcos Filipe Sussumu Ueda
2
Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) – Brasília/DF, Brasil
RESUMO ESTRUTURADO
Objetivo: O artigo busca tratar dos desafios regulatórios de promover competitividade e inovação,
bem como mitigar riscos sistêmicos do setor financeiro. Nesse contexto, o trabalho busca demonstrar
a relevância do surgimento das ntechs e da regulação jurídica associada a intervenções de ordem
regulatória e concorrencial para o aumento da inovação e da concorrência ao estabelecer segurança
jurídica no mercado de meios de pagamento no Brasil. Ao mesmo tempo, o trabalho busca demonstrar
como o sandbox regulatório surge como resposta institucional aos desafios de equilibrar objetivos
de concorrência, inovação e estabilidade financeira, analisando sua aplicação em projetos do setor
de pagamentos no Brasil.
Método: Pesquisa bibliográfica, documental e qualitativa.
Conclusões: Além do desenvolvimento tecnológico que proporcionou o surgimento de novos modelos
de negócios, a atuação do Cade e Banco Central por meio de mecanismos regulatórios e concorrenciais
orientados para o aumento da competitividade, bem como o advento da Lei nº 12.865/2013, como marco
regulatório dos arranjos e instituições de pagamento, contribuíram significativamente para aumentar
a concorrência do mercado brasileiro de meios de pagamento, sobretudo pela entrada de ntechs e
a consequente expansão da oferta de serviços financeiros, diminuição de custos e inclusão financeira
Editor responsável: Prof. Dr. Luis Henrique Bertolino Braido, Fundação Getúlio Vargas (FGV/RJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4648392251476133. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6085-1446.
1 Recebido em: 24/10/2023 Aceito em: 08/12/2023 Publicado em: 21/12/2023
2 Assessor no Tribunal Administrativo do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). Mestrando em Direito
Comercial pela Universidade de São Paulo. Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo. As opiniões contidas neste
artigo são pessoais e não representam a percepção das instituições às quais o autor está vinculado.
E-mail: mfsueda@gmail.com Lattes: http://lattes.cnpq.br/3497376293426012 ORCID: https://orcid.org/0009-0004-0794-1652
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UEDA, Marcos Filipe Sussumu. Desafios regulatórios no setor financeiro: uma análise das
transformações promovidas por fintechs no mercado de meios de pagamento no Brasil. Revista
de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 11, n. 2, p. 143-171, 2023.
https://doi.org/10.52896/rdc.v11i2.1068
de população não-bancarizada. Ademais, o estudo do sandbox regulatório aponta que esse instituto
tem sido adotado pelos reguladores brasileiros para enfrentar os desafios associados à desconexão
regulatória, fomento de inovação, competição e estabilidade sistêmica no setor financeiro, dadas
suas características que permitem reduzir mais rapidamente assimetrias de informação e antecipar
efeitos e riscos de caráter sistêmico.
Palavras-chave: ntech; regulação financeira; concorrência; desconexão regulatória; sandbox
regulatório; meios de pagamento.
STRUCTURED ABSTRACT
Objective: The paper discusses the challenges of promoting competitiveness, innovation, and
mitigating risks in the financial sector. It emphasizes the importance of legal regulation in transforming
market structures and facilitating the entry of fintechs into the payment market in Brazil. The
introduction of normative guidelines and regulatory interventions has played a role in increasing
competition and innovation by providing legal certainty. The paper also explores the concept of a
regulatory sandbox, as an institutional response designed to balance the objectives of competition,
innovation, and financial stability. It examines the application of the regulatory sandbox in projects in
the Brazilian payments sector. The article highlights the relevance of regulatory measures in creating
a conducive environment for competition, innovation, and overall stability in the financial sector.
Method: Bibliographic, documentary and qualitative research.
Conclusions: In addition to technological advancements facilitating the emergence of new business
models, the roles played by both CADE – Administrative Council for Economic Defense (Brazilian
Antitrust Authority) and the Brazilian Central Bank, through regulatory and competition mechanisms
oriented towards increasing competitiveness, as well as the enactment of Law No. 12.865/2013, a
regulatory framework for payment arrangements and institutions, have significantly contributed
to enhancing competition in the Brazilian payment methods market. This was primarily achieved
through the entry of fintechs, expansion of the financial service oerings, cost reduction, and financial
inclusion of the unbanked population. In addition, the study of the regulatory sandbox points out
that this institute has been adopted by Brazilian regulators to address the challenges associated with
regulatory disconnection, fostering innovation, competition, and systemic stability in the financial
sector, given its characteristics, which make it possible to reduce information asymmetries more
quickly and anticipate systemic eects and risks.
Keywords: fintech; financial regulation; competition; regulatory disconnection; regulatory sandboxes;
payment methods.
Classicação JEL: K21; 016.
Sumário: 1. Introdução; 2. Desaos para equilibrar
regulação, concorrência e inovação no mercado
nanceiro; 3. A relevância das para o aumento da
competição no mercado nanceiro; 4. A regulação
jurídica do mercado de meios de pagamento no Brasil. 5.
A transformação na indústria de meios de pagamento no
145
Brasil: a atuação regulatória e concorrencial; 6. O uso do
sandbox regulatório no setor de pagamentos no Brasil. 7.
Conclusão; 8. Referências
1. INTRODUÇÃO
As inovações tecnológicas têm transformado significativamente a estrutura de diversos
mercados, mas talvez nenhum outro setor tenha sido tão afetado nos últimos anos como o financeiro.
O surgimento das ntechs que introduziram novos modelos de negócios, por meio dos quais passaram
a ofertar produtos e serviços baseados em canais virtuais e de maneira acessível a parcela relevante
da população, contribuíram para o aumento da competição e da inclusão financeira em diversos
segmentos de mercado (COSTA, 2023, p. 11).
Segundo Ragazzo e Cataldo (2020) essas transformações têm modificado um importante
paradigma no acesso de serviços financeiros no Brasil antes pautado pela presença de agências
bancárias físicas. Atualmente, o acesso de serviços financeiros, desde os mais simples até mais
complexos, está relacionado à existência de uma conta bancária, por meio do qual as instituições
financeiras ofertam diversos outros serviços. Os autores sustentam que a evolução da indústria
de pagamentos tem indicado que a nova porta de entrada para a oferta de serviços financeiros
são os meios de pagamento, sobretudo, pela possibilidade de associar serviços de pagamento e
transferência de recursos por meio de aplicativos em telefone celulares de maneira mais barata e
rápida.
3
A velocidade com que essas mudanças têm se apresentado impõe desafios regulatórios
relevantes em razão do rompimento entre padrões normativos e regulatórios existentes em face
da realidade que pretendem disciplinar, tornando-os inadequados ou incompatíveis para lidar com
problemas e demandas trazidas por essas inovações. Assim, os reguladores têm sido desafiados
a encontrar estratégias regulatórias mais efetivas e proporcionais, capazes de enfrentar essas
transformações no mercado, sem inibir a inovação e a concorrência do setor, e sem desconsiderar
potenciais riscos que a atuação desses novos agentes impõe ao sistema financeiro (RANGEL, 2022, p.
151).
O presente artigo tem como objetivo demonstrar a relevância do surgimento das ntechs e
da regulação jurídica, associada a intervenções de ordem regulatória e concorrencial, para explicar
as transformações do mercado de instrumentos de pagamento brasileiro. A investigação busca
abordar a relação entre regulação, concorrência e inovação, buscando evidências de que o advento
de orientações normativas específicas e intervenções promovidas por Cade e Banco Central tiveram
papel central na abertura do mercado de meios de pagamento que ampliaram a inclusão financeira
de população não-bancarizada, além de melhorar a competitividade no setor financeiro. Ademais,
o trabalho busca demonstrar como o sandbox regulatório surge como resposta institucional aos
desafios de equilibrar objetivos regulatórios promover concorrência, inovação e estabilidade
financeira, analisando sua aplicação em projetos do setor de pagamentos no Brasil. Com esse
propósito, o trabalho foi dividido em cinco partes.
3 Nesse sentido, Ragazzo e Cataldo (2020) argumentam que o caminho para inclusão financeira no Brasil é o merca-do
de meios de pagamento, a partir da análise de experiências estrangeiras na China e Índia, em contraposição ao modelo tradi-
cional por contas bancárias, que conta com barreiras de difícil transposição.
146
UEDA, Marcos Filipe Sussumu. Desafios regulatórios no setor financeiro: uma análise das
transformações promovidas por fintechs no mercado de meios de pagamento no Brasil. Revista
de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 11, n. 2, p. 143-171, 2023.
https://doi.org/10.52896/rdc.v11i2.1068
Na primeira parte do artigo serão apresentados os desafios enfrentados pelos reguladores
do setor financeiro para disciplinar as inovações tecnológicas. Na segunda parte do artigo, apresenta-
se o conceito de ntech e quais fatores podem explicar o seu papel no aumento da concorrência no
setor financeiro, tomando como exemplo de caso o mercado de pagamentos brasileiro. Na terceira
parte, apresenta-se o marco regulatório do mercado de meios de pagamento brasileiro e a sua
relação com o aumento da concorrência no setor. Na quarta parte, busca-se analisar o impacto de
ações regulatórias e concorrenciais implementadas pelas autoridades brasileiras para o aumento
da concorrência no mercado de meios de pagamento. Na quinta parte, apresentam-se algumas
considerações sobre o instituto do sandbox regulatório como resposta institucional adotada opor
reguladores financeiros para enfrentar o problema da desconexão regulatória e a sua implementação
no Brasil.
Ao final do trabalho, busca-se contribuir com uma maior compreensão sobre o advento das
ntechs no mercado financeiro, os desafios que se impõem para a regulação e concorrência e como a
regulação jurídica pode contribuir para a estruturação de mercados mais competitivos e inovadores.
2. DESAFIOS PARA EQUILIBRAR REGULAÇÃO, CONCORRÊNCIA E INOVAÇÃO
NO MERCADO FINANCEIRO
A relação entre regulação e concorrência no sistema financeiro está pautada pelo binômio
estabilidade e concorrência.
4
Diversas autoridades têm aprofundado suas análises sobre os
impactos regulatórios e concorrenciais decorrentes das inovações tecnológicas e o surgimento de
novos modelos de negócio, dado seu potencial de transformar o padrão de competição atualmente
conhecido, além de impor novos riscos sistêmicos.
Nos últimos anos, as ntechs têm sido responsáveis por introduzir esses novos modelos
de negócios, ofertar produtos e serviços baseados no uso intensivo de tecnologia a partir de
canais virtuais, e aumentar a competitividade do setor financeiro, atendendo demandas de parcela
consumidora insatisfeita com os serviços prestados pelos bancos tradicionais, resultando em
verdadeira transformação de processos, cadeia de valor, e do relacionamento entre instituições
financeiras e clientes e entre as próprias instituições (COSTA, 2023, p. 11-12).
A criação ou o desenvolvimento de uma regulação jurídica adequada para acompanhar
a velocidade dessas mudanças torna-se cada vez mais desafiadora. Regular o comportamento
de agentes econômicos em um contexto de inovação implica risco e incerteza relacionados ao
funcionamento do mercado e ao equilíbrio sistêmico do setor regulado (BCB, 2021, p. 170)
5
.
De um lado, o risco de inviabilizar o desenvolvimento de práticas e tecnologias benéficas
ao mercado e à sociedade e impedir a entrada de empresas e modelos capazes de promover a
4 As diversas crises financeiras ao longo da história levaram os governos a estabelecer regras e controles mais rígidos
sobre a operação dos bancos, de maneira a impedir ou mitigar os riscos de quebras generalizadas. Entre as exigên-cias, a
instituição precisa manter sistemas rígidos de controle interno e gestão de risco, contratar equipes dedicadas para realização
de auditorias, elaboração e implementação de compliance, prestação de contas aos órgãos regula-dores e assegurar que as
regras estejam sendo cumpridas. A adequação a esses padrões representa um importante custo, dificultando a entrada de
bancos menores, que enfrentam dificuldades para arcar com esses custos e ainda se manterem rentáveis.
5 “É no contexto de inovação rápida e constante que o regulador financeiro procura se posicionar, com foco em uma
regulação equilibrada que, de um lado, não iniba as inovações, mas, de outro, não enseje riscos desproporcionais para os
usuários e clientes e para a estabilidade do sistema financeiro”.
147
concorrência nos mercados. Por outro lado, existe o risco sistêmico, ao permitir que a execução de
determinadas práticas e modelos de negócio criem um risco elevado de quebra generalizada de
empresas ou a criação de condições competitivas assimétricas que resultem na exclusão de empresas
e, em última instância, contribuam para a concentração excessiva do mercado, tornando mais difícil
fomentar a competitividade e a inovação.
Nesse contexto, um dos principais desafios enfrentados pelos agentes reguladores é reduzir
a diferença entre as mudanças que se verificam no mundo dos fatos e o arcabouço normativo-
regulatório que disciplina e orienta o comportamento econômicos dos agentes regulados. A nova
realidade trazida por essas mudanças pode demandar um conjunto regulatório distinto para que os
objetivos perseguidos pela atuação estatal sejam alcançados. Esse rompimento entre o arcabouço
normativo-regulatório e a realidade é descrito por Vianna como desconexão regulatória, cujo
prolongamento que resulta nos dois principais desafios regulatórios à luz das inovações tecnológicas
disruptivas: o descompasso e o timing regulatórios (VIANNA, 2019, p. 59). Moses (2013, p. 6) ainda
acrescenta o problema de ritmo (pacing problem) como uma terceira ordem de problemas.
Segundo Vianna (2019, p. 59), o descompasso regulatório se refere “ao intervalo de tempo entre
o momento em que se evidencia a desconexão regulatória e a consequente resposta do regulador”,
enquanto o timing regulatório corresponde à “análise relativa ao momento certo para intervir (caso se
decida intervir)”. Já Moses (2013, p. 7) define o problema de ritmo (pacing problem) como a dificuldade
de acompanhar as mudanças aceleradas das transformações tecnológicas, podendo ser formulado
a partir de questões como gerenciamento de novos riscos negativos decorrentes das mudanças,
gerenciamento de incertezas da aplicação das leis existentes, e da necessidade de adaptar regimes
regulatórios que se mostram inadequados para os novos contextos que se apresentam.
Uma das decisões mais complexas e impactantes sobre a perspectiva da regulação e dos
efeitos produzidos sobre o mercado é o timing regulatório. Philippon (2019, p. 218) recorre à análise
histórica para afirmar que as regulações tendem a ser mais eficientes quando implementadas em
estágio de desenvolvimento inicial de uma indústria, uma vez que seria mais difícil alterar padrões
estabelecidos quando a indústria apresenta maior consolidação e os valores econômicos envolvidos
são mais elevados. Moses (2013, p. 7) também indica um aumento da resistência à mudança quando
a tecnologia se encontra consolidada, tornando a sua mudança mais custosa sob a perspectiva
regulatória, dada a proporção e a complexidade que adquirem nesse momento.
Por outro lado, Baptista e Keller (2016, p. 145) sustentam que a intervenção regulatória em
momento de maior estabilidade institucional pode ser mais adequada, pois, em princípio, atuações
mais imediatas apresentam “riscos maiores e mais difíceis de serem revertidos”, além da falta de
informações disponíveis para fundamentar uma decisão consistente. Segundo as autoras, uma
intervenção precoce ou inadequada pode produzir efeitos adversos, inibindo a inovação tanto
em relação ao aprimoramento de fatores já existentes, quanto ao surgimento de tecnologias mais
inovadoras, resultando em decisões que levem à normatização desnecessária e desperdício de recursos.
Diante das diversas consequências da atuação regulatória, um dos maiores desafios
para o agente regulador é avaliar se a estrutura regulatória vigente é adequada para atender as
novas demandas que surgem em decorrência das inovações tecnológicas disruptivas e, caso
sejam insuficientes, como enfrentar essa incompatibilidade. Segundo Vianna (2019, p. 16), esse
desalinhamento entre normas regulatórias e o efetivo funcionamento do mercado repercutem
148
UEDA, Marcos Filipe Sussumu. Desafios regulatórios no setor financeiro: uma análise das
transformações promovidas por fintechs no mercado de meios de pagamento no Brasil. Revista
de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 11, n. 2, p. 143-171, 2023.
https://doi.org/10.52896/rdc.v11i2.1068
diretamente sobre o risco sistêmica do setor financeiro, tendo em vista possibilidade de se
negligenciar novos riscos acrescentados por essa dinâmica de mudanças, fenômeno que o autor
denomina desconexão regulatória sistematicamente relevante.
Por sua vez, a reconexão regulatória pode ocorrer por meio da acomodação de uma nova
demanda regulatória nas normas vigentes, por alteração parcial no regramento ou pela elaboração
de uma nova regulação específica. Assim, a atuação regulatória requer uma análise complexa que
considere o grau de intervenção nos padrões já estabelecidos para o setor regulado (VIANNA,
2019, p. 59, 61).
Portanto, além de a atuação regulatória ser tempestiva, é necessário que seja adequada.
Nesse sentido, o agente regulador precisa identificar o problema, o fenômeno inovador e seu
potencial disruptivo, para que seja capaz de adotar as medidas cabíveis ao melhor funcionamento
do setor regulado. A atuação do órgão regulador será mais eficiente quanto maior for a capacidade
de antecipar tendências e reagir tempestiva e assertivamente às mudanças, mitigando o
descompasso regulatório.
Assim, é relevante verificar qual inovação está em curso e quais as consequências relevantes
que essa inovação gera para o setor regulado, sobretudo em termos de risco sistêmico. Para
enfrentar esses problemas, diversos reguladores financeiros têm reconhecido a insuficiência dos
instrumentos regulatórios tradicionais de caráter reativo e adotado o instituto do sandbox regulatório,
instrumento regulatório de caráter experimental e aberto à cooperação entre regulador e regulados,
que proporciona espaço de aprendizado compartilhado e visa permitir uma atuação prospectiva da
autoridade reguladora capaz de antecipar tendências (VIANNA, 2019, p. 65-66; RANGEL, 2022, p. 154) e
que será abordado adiante no capítulo 5 do presente artigo.
Antes, porém, o próximo capítulo abordará o que são as ntechs, em que contexto surgiram,
as razões que as levaram se tornarem relevantes a ponto de impactar a dinâmica concorrencial do
setor financeiro e os desafios que enfrentam para crescerem no mercado.
3. A RELEVÂNCIA DAS FINTECHS PARA O AUMENTO DA COMPETIÇÃO NO
MERCADO FINANCEIRO
As recentes transformações promovidas no setor financeiro não poderiam ser explicadas
sem a compreensão do surgimento das chamadas ntechs.
6
Fintech (Financial Technology) é um
termo amplo e heterogêneo
7
que congrega as palavras finanças e tecnologia, e, de forma geral, pode
ser utilizada para designar empresas que utilizam a tecnologia de forma inovadora para criar e
desenvolver produtos e serviços financeiros, estimulando novos modelos de negócios, aplicações,
6 Conceitualmente, existem autores que distinguem as figuras startups das ntechs. Hermanson (2011) diferencia as
figuras nos seguintes termos: “as startups podem ser definidas como empresas de pequeno porte, recém-criadas, cuja ativida-
de principal são a pesquisa e o desenvolvimento de ideias inovadoras, cujos custos de manutenção sejam baixos e ofereçam
a possibilidade de rápida e consistente geração de lucros.” Por sua vez, “embora a palavra ntech remeta à ideia de novas
empresas, há firmas que surgem com financiamento de grandes instituições finan-ceiras e, desse modo, saltam a etapa em que
seriam consideradas startups.”
7 Não há um consenso na doutrina ou entre as autoridades reguladoras ou especializadas sobre a definição do termo
ntech. Para os fins deste trabalho, as definições adotadas serão amplas, não restringindo as ntechs em termos de porte,
atividade e enquadramento legal, tais como instituição financeira, bancária ou não bancária, seguindo, as-sim, elementos de
identificação considerados pelo BCB.
149
processos e produtos (BCB, 2021, p. 164).
No Brasil, o Banco Central do Brasil (Banco Central ou BCB) define o termo da seguinte forma:
Fintechs são empresas que introduzem inovações nos mercados nanceiros por meio
do uso intenso de tecnologia, com potencial para criar novos modelos de negócios.
Atuam por meio de plataformas online e oferecem serviços digitais inovadores
relacionados ao setor (FINTECHS, [2023]).
Da definição adotada pelo Banco Central, verifica-se que além do uso intensivo de tecnologia,
as ntechs são caracterizadas por promover inovações e pelo potencial de criar modelos de negócios.
As ntechs encontraram um espaço propício para seu desenvolvimento ao adotarem modelos de
negócio e uso mais eficiente das novas tecnologias, permitindo uma melhor adaptação às mudanças
promovidas pelas inovações tecnológicas no mercado.
Em geral, as ntechs se especializaram em atender determinados nichos com baixa penetração
de serviços financeiros tradicionais e alto potencial de crescimento, ultrapassando as atividades típicas
de um banco comercial. Contudo, algumas ntechs passaram a concorrer diretamente com os bancos
tradicionais, a partir de serviços inteiramente prestados por plataformas digitais e sem a presença de
agências bancárias, adotando um modelo de negócio altamente dependente de tecnologia.
O surgimento dessas empresas ocorre no contexto da crise financeira de 2008, com o colapso
de grandes instituições financeiras e o desenvolvimento de soluções pela internet, criando um cenário
propício para o surgimento de alternativas aos bancos tradicionais (VERÍSSIMO, 2019, p. 47). Em relação
às empresas tradicionais do setor financeiro, as ntechs se caracterizaram por apresentarem uma
estrutura de custos com baixa dependência de estrutura física, menor quantidade de funcionários
e escopo de atividades e negócios delimitados. Ao contrário das grandes instituições financeiras,
grande parte das ntechs surgiu na era da economia digitalizada, sem herdar sistemas legados e
grandes estruturas corporativas, geralmente caracterizadas pela rigidez e lentidão na tomada de
decisões, além do alto custo operacional.
Por outro lado, as ntechs apresentaram como principais desvantagens: (i) a ausência de uma
base de clientes leais; (ii) acesso limitado às informações provenientes do relacionamento pretérito
com o cliente (soft information); (iii) ausência de reputação e reconhecimento da marca; (iv) elevado
custo de capital e balanço financeiro reduzido; e (v) ausência de experiência no gerenciamento
regulatório e administração de risco (OECD, 2020, p. 15).
No Brasil, o impacto gerado pela atuação de ntechs tem sido relevante. Muito embora o mercado
financeiro brasileiro ainda seja concentrado e imponha altos custos regulatórios a seus participantes,
novos agentes têm ingressado em diversos segmentos, a exemplo do crescimento de bancos digitais
(Nubank, Banco Inter, C6, Neon, Original), plataformas de crédito (Creditas, Geru), plataformas de
planejamento financeiro (PicPay que adquiriu a plataforma Guia Bolso), pagamento de benefícios
(Caju, Flash, Méliuz) e meios de pagamento eletrônico (Ebanx, Stone, PagSeguro, MercadoPago).
Não obstante, as ntechs têm enfrentado dificuldades para atrair clientes e obter uma
participação de mercado significativa (TAKAR, 2017), uma vez que os consumidores têm resistido à
ideia de mudar de banco, sobretudo agentes com atuação em segmentos altamente concorridos,
como o mercado de empréstimos para empresas de grande e médio portes. Segundo Corrêa (2020, p.
150
UEDA, Marcos Filipe Sussumu. Desafios regulatórios no setor financeiro: uma análise das
transformações promovidas por fintechs no mercado de meios de pagamento no Brasil. Revista
de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 11, n. 2, p. 143-171, 2023.
https://doi.org/10.52896/rdc.v11i2.1068
39), esse mesmo padrão se verifica em outras jurisdições como a China, país avançado em termos de
ecossistema e tecnologia financeira, no qual as ntechs têm alcançado importante espaço, mas que
representam apenas 3% de participação no total da oferta de crédito do setor não bancário.
Embora as ntechs tenham contribuído para o aumento da competição no setor financeiro, há
um movimento crescente de aproximação entre os bancos e ntechs, seja por meio de programas de
aceleração, parcerias, contratação de serviços e aquisições (DISTRITO, 2021), estabelecendo relações
que podem ser alvo de potenciais preocupações regulatórias e concorrenciais.
Segundo a Organisation for Economic Co-operation and Development (OECD), diversas
ntechs não buscam obter licenças para operar como bancos em razão dos altos custos regulatórios
envolvidos e considerando que ainda podem obter receita em segmentos rentáveis nos quais os
bancos não operam. A entrada de agentes não-bancarizados e o grau de concorrência exercido no
varejo bancário depende da regulação implementada para os agentes envolvidos. Outro fator crucial
para a competitividade no mercado depende das características dos mercados envolvidos, uma vez
que influenciam as estratégias adotadas por entrantes e incumbentes (OECD, 2020, p. 20-21).
Na presença de elevados custos de troca, os incumbentes possuem incentivos para acomodar
a entrada de novos agentes, considerando que tendem a manter sua base de clientes, enquanto
entrantes tendem a atrair segmentos de clientes não-bancarizados além daqueles insatisfeitos com
a prestação dos serviços pelas instituições incumbentes. Adicionalmente, os incumbentes recebem
tarifas adicionais pela operação de novos agentes no sistema bancário e que compensam o custo do
aumento das transações agregadas no sistema (OECD, 2020, p. 20-21).
Além das condições do mercado, a estratégia dos incumbentes pode variar em função da
posição adotada pelos entrantes. Os entrantes podem atuar como uma empresa pequena que atende
nichos de mercado, como a população não-bancarizada. Nesse modelo, esses entrantes costumam
formar parcerias, inclusive com bancos tradicionais, beneficiando-se da marca estabelecida, de
economias de escala e dos canais de distribuição para oferta de seus serviços, de forma que os
bancos passam a funcionar como plataformas de serviços financeiros (OECD, 2020, p. 20-21).
É possível ainda que os entrantes adotem a estratégia de expandir sua atuação como
banco digital licenciado, acirrando a concorrência com os incumbentes, mas suscitando potenciais
preocupações concorrenciais e regulatórias. Os incumbentes tendem a competir e adotar estratégias
para dificultar ou impedir a entrada de agentes agressivos, que busquem competir por segmentos
rentáveis e consolidados explorados pelos incumbentes (OECD, 2020, p. 20-21). Uma das estratégias
possíveis é o fechamento de acesso à infraestrutura existente de serviços financeiros ou a criação do
próprio banco digital associado com estratégias anticompetitivas para alavancar a participação da
empresa verticalizada nos segmentos em que enfrentam a concorrência desses entrantes.
Além da adoção dessas estratégias, é provável que entrantes com maior potencial de
consolidação ou que estejam ganhando participação de mercado sejam alvo de aquisição pelos
bancos e grandes instituições financeiras. Nesse cenário, é importante que as autoridades regulatória
e concorrencial considerem a natureza e a estratégia dessa aquisição, não se limitando a uma
análise estática baseada em participações de mercado, mas buscando compreender fatores como a
dinâmica competitiva do mercado, seus movimentos históricos e tendências, o potencial disruptivo
da empresa, as estratégias que fundamentam o negócio e o impacto da operação para a rivalidade e
custo de entrada no mercado.
151
Vale destacar ainda que a capacidade financeira e o acesso a fontes de financiamento
permanecem sendo importantes barreiras à entrada e crescimento das ntechs brasileiras no
mercado. O financiamento das ntechs é dependente de investidores de capital de risco (DISTRITO,
2021, p. 39-41)
8
, dada a natureza dos riscos atrelados ao investimento aportado, o que torna o custo
de capital dessas empresas elevado (PWC, 2019, p. 2-5). Além disso, os modelos de negócios das
ntechs dependem da obtenção de escala, o que muitas vezes significa suportar prejuízos financeiros
no curto e médio prazo até que a operação passe a ser rentável.
Segundo o estudo Pesquisa Fintechs de Crédito 2019 elaborado conjuntamente pela PwC
Brasil e pela Associação Brasileira de Crédito Digital (ABCD), o crédito é um recurso escasso no
Brasil, concentrado em poucos grandes bancos, que emprestam a um custo elevado e com oferta
restrita. Nesse contexto, o aumento da concorrência seria essencial para enfrentar esse problema
e as inovações tecnológicas estariam contribuindo para a sua implementação, ao viabilizar o
surgimento e o crescimento acelerado de novas empresas, que passaram a promover mudanças no
mercado (PWC, 2019, p. 2-5).
O último estudo de pesquisa das ntechs de crédito em 2023, divulgado pela PWC em parceria
com a ABCD, considera a situação específica das ntechs de crédito, e revela que o cenário de acesso
a financiamento dessas ntechs apresentou melhora nos últimos anos. Destaca-se a diversificação
das fontes de financiamento, com destaque para as operações com Fundos de Investimentos em
Direitos Creditórios (FIDCs) ou securitizadoras, superando a dependência de capital próprio, que
apresentou queda relevante de 14% entre 2021 e 2022. Observou-se ainda aumento da utilização
de instrumentos financeiros como emissão de debêntures e ações preferenciais para captação de
recursos. Especialmente em 2022, destacou-se significativamente o crescimento de linhas de crédito
(empréstimos, financiamentos de bancos e organizações de fomento) como fontes representativas
de financiamento das ntechs de crédito (PWC, 2023, p. 31-32).
Não obstante, o Relatório de Economia Bancária 2022, elaborado pelo Banco Central, indica
que o mercado brasileiro de crédito permanece concentrado. Na modalidade de crédito para pessoas
físicas, os cinco maiores bancos (Caixa, BB, Bradesco, Itaú e Santander) concentraram quase 66,9%
de participação de mercado no segmento de operões de crédito (incluindo instituições bancárias e
não-bancárias), em 2022, com ligeira redução de concentração nos últimos três anos (67,9% em 2021,
68,5% em 2020 e 69,8% em 2019) (BCB, 2022a, p. 216).
Na modalidade de crédito para pessoas jurídicas, os cinco maiores players representaram
64,3% de participação de mercado, em 2020
9
, com redução de concentração nos últimos três anos
da ordem de 6,5%, em razão da diminuição da participação do Banco Nacional de Desenvolvimento
8 Segundo levantamento do Distrito Fintech Mining Report 2021, de 2012 até os primeiros quatro meses de 2021, cerca
de R$ 4,5 bilhões de reais foram investidos em financiamento de ntechs brasileiras, com destaque para os anos de 2019 (R$
1,08 bi), 2020 (R$ 1,88 bi) e 1Q/2021 (R$ 0,73 bi), que representaram parte relevante dos inves-timentos aportados nos últimos
anos. O relatório também indica que as ntechs em estágio de maior maturidade (late-stages) concentram a maior parte dos
investimentos em ntechs brasileiras, tendência que deve se acentuar nos próximos anos. As 10 maiores ntechs e startups
que receberam mais investimentos representam mais de 90% dos investimentos totais aportados.
9 A partir da edição 2021 do Relatório de Economia Bancária, o Banco Central passou a analisar a concentração das
operações de crédito segmentada por mercados relevantes: financiamentos rurais e agro (PF+PJ), financiamentos habitacionais
(PF+PJ), financiamentos de infraestrutura e desenvolvimento (PJ), operações de aquisição de recebí-veis comerciais (PJ), capital
de giro (PJ), crédito pessoal com consignação em folha (PF) e cartão de crédito (PF+PJ), mercados que representam conjunta-
mente 71,8% do total das operações existentes no SFN até 31 dezembro de 2021. A segmentação foi adotada para garantir maior
transparência na análise de competição no SFN.
152
UEDA, Marcos Filipe Sussumu. Desafios regulatórios no setor financeiro: uma análise das
transformações promovidas por fintechs no mercado de meios de pagamento no Brasil. Revista
de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 11, n. 2, p. 143-171, 2023.
https://doi.org/10.52896/rdc.v11i2.1068
Econômico e Social (BNDES) e do Banco do Brasil (BCB, 2021, p. 132-133).
10
Ainda que se observe uma redução de concentração na concessão de crédito, sobretudo na
modalidade de pessoas jurídicas, verifica-se que os resultados ainda não apontam para mudanças
significativas na oferta de crédito no Brasil (BCB, 2021, p. 132-133).
11
De toda forma, a entrada, o crescimento e o grau de rivalidade exercido por novos agentes
no mercado financeiro tendem a ser condicionados pelas escolhas regulatórias adotadas para os
diferentes segmentos afetados. No Brasil, o Banco Central tem promovido uma agenda regulatória
buscando um aumento da competitividade do setor financeiro. Nesse sentido, o órgão regulador
tem se empenhado na adoção de normas e iniciativas que tornem os mercados financeiros mais
competitivos, inclusivos e que fomentem a entrada e desenvolvimento de novos agentes econômicos.
Contudo, desafios históricos envolvendo o equilíbrio entre estabilidade sistêmica, aumento de
competitividade e inovação são enfrentados pelo agente regulador.
Talvez nenhum outro segmento tenha sido tão impactado pelas inovações tecnológicas,
mudanças regulatórias e concorrenciais nos últimos anos como o mercado de meios de pagamento.
Parte relevante dessas mudanças foram promovidas pela entrada e atuação das ntechs, pela
introdução de novos modelos de negócios viabilizados pelo avanço tecnológico, que promoveram a
inclusão financeira de população não-bancarizada, além de aumentar a oferta e acesso de clientes
do segmento de varejo a produtos financeiros antes disponibilizados a consumidores de maior renda.
Não obstante, além do desenvolvimento econômico e tecnológico promovido pelas ntechs
no mercado financeiro, a atuação dessas empresas foi viabilizada pela atuação regulatória do Banco
Central e concorrencial do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) para fomentar a
abertura do mercado de adquirência e o advento da Lei nº 12.865/2013, que proporcionou segurança
jurídica para realização desses investimentos ao regulamentar arranjos, instituições e contas de
pagamento, além de estabelecer a competência do Conselho Monetário Nacional (CMN) e do Banco
Central para regulamentar este setor.
As instituições de pagamento
12
possibilitaram a realização de pagamentos e transferência
de recursos financeiros independentemente de relacionamentos com bancos ou outras instituições
financeiras, muito embora sejam impedidos de prestar serviços financeiros específicos como a
concessão de crédito e financiamento aos clientes. Os recursos ficam armazenados em contas de
pagamento
13
, custodiadas pelo próprio Banco Central, e permitem a movimentação financeira dessas
10 Vale destacar que essa redução na modalidade de pessoas jurídicas é explicada pela diminuição de participação dos
dois maiores players: BNDES (de 20,6% para 15,7%) e Banco do Brasil (17,6% para 14,3%). Vale destacar que houve um aumento
de participação de outros bancos comerciais e múltiplos (de 21,1% para 25,9%) e cooperativas de crédito (3,2% para 5%), mas
também o aumento de participação de outros grandes bancos (Itaú em 2,6% e Caixa em 0,9%).
11 As implicações da elevada concentração bancária podem ser observadas na escassez de acesso ao crédito para
viabilizar o crescimento econômico. O acesso ao crédito é altamente dependente de recursos públicos. Os bancos privados
possuem baixa participação na concessão de crédito próprio direcionado a políticas específicas, como o agronegócio e
habitacional, segmentos dominados pelos bancos públicos. Boa parte dos recursos disponibilizados pelos bancos privados
são provenientes de repasse de recursos públicos com origem no BNDES, o FAT ou o FGTS.
12 Segundo o BCB, “instituição de pagamento (IP) é a pessoa jurídica que viabiliza serviços de compra e venda e de
movimentação de recursos, no âmbito de um arranjo de pagamento, sem a possibilidade de conceder empréstimos e financia-
mentos a seus clientes. Ver (INSTITUIÇÕES DE PAGAMENTO, [2023]).
13 Contas de pagamento são serviços ofertados por instituições financeiras ou instituições de pagamento que per-
mi-tem unicamente a realização de pagamentos, saques ou transferências. Não necessariamente são isentas de taxas, não
possuem agências físicas, mas são mais baratas que as contas bancárias tradicionais e acessadas por via digi-tal.
153
contas, a partir de cartões pré-pagos ou de um telefone celular, dispensando o uso da moeda em
espécie. As contas de pagamento são interoperáveis, permitindo aos seus usuários receber e enviar
dinheiro para bancos e outras instituições de pagamento.
Na prática, isso permitiu que instituições não-bancárias (como PagSeguro, Mercado Pago,
Stone, Uber, iFood) pudessem ofertar contas para realização de pagamentos e transferências de
recursos financeiros como alternativa ao domicílio bancário, a custo muito inferior, o que permitiu
a inclusão financeira de desbancarizados, especialmente de estabelecimentos de pequeno porte e
prestadores de serviços com baixo faturamento.
Possibilitando o acesso desses segmentos ao sistema financeiro, essas empresas
puderem desenvolver produtos e serviços para atender demandas específicas desses segmentos,
tradicionalmente de pouco interesse comercial dos bancos. Ao identificar uma parcela significativa
de consumidores, com baixa penetração de serviços financeiros, algumas empresas identificaram
oportunidades de gerar novas receitas atendendo a essa demanda e desenvolveram modelos de
negócio voltados a esses segmentos, a exemplo da empresa PagSeguro.
14
A companhia tem expandido seu portfólio de serviços, investindo no desenvolvimento de
um ecossistema financeiro próprio e reduzindo a dependência dos comerciantes aos tradicionais
serviços bancários, a partir de soluções como as operações de pré-pagamento.
15
As operações são
realizadas sem depender de serviços bancários, reduzindo os custos incorridos no sistema pela
eliminação de intermediários na cadeia de pagamento e fornecendo uma alternativa mais barata aos
empreendedores. O desenvolvimento desses modelos só foi viabilizado a partir da regulação jurídica
do setor de pagamentos no Brasil, atraindo a competência regulatória do Banco Central.
Portanto, as próximas seções têm como objetivo analisar a regulação jurídica do segmento de
meios de pagamentos, as atuações de Banco Central e Cade nesse mercado, e investigar a existência
de uma relação com o aumento de inovação e competitividade observados na indústria brasileira de
meios de pagamento.
4. A REGULAÇÃO JURÍDICA DO MERCADO DE MEIOS DE PAGAMENTO NO
BRASIL
Instrumentos de pagamento ou meios de pagamento são dispositivos utilizados para comprar
produtos/serviços ou para transferir recursos, como o cartão de débito ou de crédito, o boleto ou
o telefone celular (BRASIL, 2019, p. 5). Em última instância, os meios de pagamento viabilizam o
relacionamento entre compradores e vendedores no comércio de bens e serviços.
14 A PagSeguro é uma empresa do grupo Uol que surgiu inicialmente como subcredenciadora (atualmente a PagSeguro
atua como credenciadora) habilitando estabelecimentos de pequeno porte e microempreendedores. A empresa inovou no
mercado ao trazer o modelo de compra das maquininhas (comercialmente denominada Moderninha) aos estabelecimentos,
anteriormente só disponíveis para aluguel e com elevado custo. O equipamento disponibili-zado pela PagSeguro apresentava
tamanho e custos menores comparados aos modelos oferecidos pelos concorren-tes, o que resultou na expansão acelerada
da empresa, especialmente entre os pequenos comerciantes.
15 As operações de pré-pagamento permitem a movimentação de recursos financeiros alocados nas contas criadas
pelas instituições de pagamento, a partir do uso de cartão pré-pago ou aplicativo de telefone celular, permitindo que a receita
obtida com a venda de produtos ou serviços, mediante a utilização de algum meio de pagamento eletrôni-co, seja depositada
na conta de pagamento e o comerciante possa utilizar o saldo para realização de suas próprias compras.
154
UEDA, Marcos Filipe Sussumu. Desafios regulatórios no setor financeiro: uma análise das
transformações promovidas por fintechs no mercado de meios de pagamento no Brasil. Revista
de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 11, n. 2, p. 143-171, 2023.
https://doi.org/10.52896/rdc.v11i2.1068
Os meios de pagamento eletrônico
16
são aqueles que dispensam um meio físico tradicional
como dinheiro ou cheque para a consumação da transferência de valores do consumidor para o
estabelecimento comercial ou para o prestador de serviço (CAVALCANTI; SANTOS, 2020, p. 15).
Atualmente, os cartões de pagamento (crédito, débito e pré-pago) representam a principal modalidade
de pagamento eletrônico. É preciso destacar, contudo, o crescimento de outras modalidades como
as carteiras digitais ou eletrônicas (wallets)
17
e, mais recentemente, o surgimento dos pagamentos
instantâneos nas compras físicas ou online, que tem transformado o mercado por meio da
desintermediação da cadeia de pagamento.
A transação de pagamento eletrônica é resultado de uma relação complexa que envolve
vários agentes para a sua concretização. A atuação desses agentes é estruturada em forma de rede,
que compõe um sistema de pagamento eletrônico ou rede de pagamento. Os organizadores dessa
rede são denominados bandeiras, agentes que estruturam arranjos de pagamento.
Os arranjos de pagamento consistem em conjunto de regras e procedimentos que disciplinam
a prestação de serviços de pagamento ao público.
18
As transações realizadas em função das operações
de compra e venda entre estabelecimentos comerciais ou prestadores de serviços e consumidores
ocorrem em plataformas eletrônicas administradas pelos instituidores desses arranjos, que
fornecem a rede de tecnologia que sustenta o sistema de pagamento. Existem dois tipos de arranjos
de pagamento: aberto e fechado.
Os arranjos de pagamento aberto ou arranjo de quatro partes são aqueles em que qualquer
banco ou instituição financeira podem se juntar à bandeira instituidora do arranjo mediante livre
negociação, a exemplo dos arranjos instituídos por Visa e MasterCard. Os principais participantes
do arranjo aberto são: os emissores
19
(e.g. Itaú, Bradesco, Santander, BB, Nubank), as bandeiras
20
(e.g. Visa, MasterCard, Cielo, Hiper) e as credenciadoras ou adquirentes
21
(e.g. Cielo, Rede, Stone,
GetNet, PagSeguro).
Já no denominado arranjo fechado, ou arranjo de três partes (por ser formada por bandeira,
estabelecimento e consumidor), uma única entidade presta os serviços de emissão e credenciamento.
Algumas das entidades que atuam nesse modelo são American Express, Elo, Ticket e VR, estes últimos
16 Para os fins deste artigo, apenas os meios de pagamento eletrônicos serão abordados, uma vez que as principais
transformações e tendências de mudança no mercado podem ser observados nessa modalidade de pagamento. Não se ignora,
por outro lado, que os meios de pagamento eletrônicos representam um estágio da evolução do mer-cado alcançado mediante
inovações tecnológicas que indicam o potencial transformador e conformador desse fator no mercado.
17 Carteiras digitais são meios de pagamento que permitem acesso a contas relacionados ao cartão de crédito ou débito
para pagamentos e transferências em compras presenciais ou online, além de armazenar dados de pagamento, dispensando
o uso do cartão de plástico. Diversas empresas de tecnologia passaram a oferecer esse produto, a exemplo da Apple Pay,
Samsung Pay, Google Wallet, carteiras digitais disponíveis no mercado.
18 Art. 6º, inc. I, Da Lei nº 12.865/2013 (BRASIL, 2013).
19 Emissores são instituições financeiras habilitadas por bandeiras para emitir cartões das respetivas marcas. São
res-ponsáveis pela liberação do crédito aos portadores, efetuam a cobrança dos valores gastos e assumem o risco de crédito
do portador perante o credenciador garantindo o pagamento. Cobram taxa das credenciadoras (determina-da pela bandeira,
conforme tipo de cartão, segmento do estabelecimento comercial e riscos de fraude).
20 Bandeiras são empresas que conectam credenciadores e emissores de cartão, autorizando transações e garantindo
sua efetivação. São responsáveis pela definição e gestão das regras gerais de funcionamento do sistema de cartões de
pagamento. Cobram taxa dos emissores e das credenciadoras.
21 Credenciadoras ou adquirentes são empresas responsáveis pela habilitação de estabelecimentos comerciais para
aceitação dos cartões como meio de pagamento e a captura, processamento e liquidação das transações por meio dos
terminais de vendas (maquininhas). Cobram taxa dos estabelecimentos pela prestação dos serviços.
155
que atuam no segmento de vouchers de alimentação. Portanto, a diferença em relação ao arranjo
aberto é que no esquema fechado o agente intermediador entre bandeira e os consumidores finais
(portador do cartão e estabelecimentos comerciais) é feita por um mesmo agente, eliminando a tarifa
de intercâmbio repassada pelo emissor ao credenciador (BRASIL, 2019, p. 15). Além da quantidade de
agentes envolvidos, há diferentes estruturas de precificação para operação dessas redes.
22
Com a expansão do comércio online (e-commerce), novas figuras passaram a integrar a
cadeia de pagamentos, como os subadquirentes
23
(e.g. Sumup) ou facilitadores de pagamento
24
(e.g. Paypal). Esses agentes passaram a aumentar sua presença e relevância, sobretudo junto aos
estabelecimentos de pequeno porte, em razão de sua maior acessibilidade, dada as menores
exigências para prestação do serviço ao estabelecimento em comparação com as exigidas pelas
credenciadoras (BRASIL, 2019, p. 15-16).
As subcredenciadoras exercem a função de intermediar as transações entre estabelecimentos
e portadores em substituição das credenciadoras, trazendo vantagem aos estabelecimentos ao
facilitar a comunicação com as credenciadoras sem necessidade de assumir uma relação contratual
com estas, ao mesmo tempo que assumem as responsabilidades por repassar os valores de
remuneração ao credenciador (BRASIL, 2019, p. 17-18).
Esses agentes têm desempenhado papel fundamental para viabilizar transações realizadas
no contexto dos negócios de pequeno e médio porte. Nesse contexto, além das facilitadoras/
subcredenciadoras, empresas não-financeiras que atuam na emissão de cartões surgiram com o
avanço tecnológico dessa indústria, e passaram a atender esse segmento de consumidores ofertando
novos produtos antes destinados a clientes corporativos de maior faturamento. Tais empresas são
denominadas instituições de pagamento (IPs) e têm chamado a atenção pelo expressivo crescimento
apresentado nos últimos anos e consequente pressão competitiva que tem gerado sobre os bancos
no setor de emissão (BRASIL, 2019, p. 17-18).
Para o propósito deste artigo, destaca-se que muitas dessas IPs são classificadas como
ntechs em razão dos modelos de negócios inovadores baseados no uso de tecnologia intensiva que
impactaram significativamente o setor financeiro, incluindo o de meios de pagamento.
Embora o Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB) tenha como marco legal a Lei nº
10.214/2001, que permitiu a utilização das modalidades de pagamento via boleto, DOC, TED e DDA,
o desenvolvimento das IPs se tornou possível a partir de 2013, quando entrou em vigor a Lei nº
12.865/13, que estabeleceu a competência de regulação do setor de meios de pagamento ao CMN e
ao Banco Central, e regulamentou o funcionamento dos arranjos (conjunto de regras que disciplina
o funcionamento do instrumento de pagamento) e instituições de pagamento (entidades que
participam dos arranjos de pagamento), integrando-os ao SPB.
A definição do Banco Central como órgão regulador e a edição de normas para regulamentação
do setor trouxe segurança jurídica ao mercado, atraindo mais investimentos e consolidando a
22 Para maiores informações cf. (BCB, 2010).
23 Subadquirentes são empresas que atuam na captação de transações e habilitação de pequenos lojistas e profissio-
-nais liberais. Conectam o estabelecimento e o setor de credenciamento. Não possuem contrato com as bandeiras, apenas com
os credenciadores (Sumup, PinPag, Tecpay).
24 Facilitadores são agentes que possibilitam que os usuários cadastrados nos sites dessas empresas realizem suas
operações financeiras sem repassar seus dados financeiros às lojas virtuais nas quais estão efetuando uma compra de bem ou
serviço. O exemplo mais proeminente de facilitador é o Paypal.
156
UEDA, Marcos Filipe Sussumu. Desafios regulatórios no setor financeiro: uma análise das
transformações promovidas por fintechs no mercado de meios de pagamento no Brasil. Revista
de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 11, n. 2, p. 143-171, 2023.
https://doi.org/10.52896/rdc.v11i2.1068
participação de grupos, que passaram a captar recursos no mercado de capitais nacional e no exterior,
para desenvolver novos modelos de negócios e expandir sua atuação no Brasil. Vale destacar que até
então, somente instrumentos de pagamento emitidos por instituições financeiras estavam sujeitas à
supervisão do Banco Central, além de não existirem regras específicas sobre o tema, o que resultava
em limitação dos agentes que atuavam nesse segmento.
Nesse contexto, uma das medidas mais importantes para a transformação do mercado foi
a regulamentação das instituições e contas de pagamento (contas de registro detidas em nome do
usuário final de serviços de pagamento), por meio da Circular 3.680/2013, que viabilizaram a atuação
de agentes não-bancarizados na oferta de alternativas aos serviços bancários, como a oferta de
contas e operações de pré-pagamento.
Posteriormente, diversos atos normativos expedidos pelo Banco Central reforçaram
princípios constantes na Lei nº 12.865/2013 para o orientar a supervisão e o funcionamento dos
arranjos de pagamento.
25
Nesse sentido, vale destacar a previsão de interoperabilidade dos arranjos
de pagamento (no próprio arranjo ou entre arranjos diferentes), a não discriminação no acesso de
infraestruturas necessárias para a operação desses arranjos
26
, além de medidas para reduzir barreiras
à entrada e estimular a concorrência na antecipação de recebíveis
27
(BRASIL, 2019, p. 18-20).
Em 2014, a partir da Circular nº 3.721/2014, o Banco Central buscou implementar a padronização
da agenda de recebíveis que permitisse a captura e o compartilhamento de informações sobre
pagamentos entre credenciadores e bancos, contribuindo para a redução das barreiras à entrada no
mercado de pagamentos.
Em 2015, destaca-se a Circular nº 3.765/2015 que determinou a centralização da liquidação
dos arranjos de pagamento, contribuindo para a abertura do mercado de credenciamento, a partir do
aumento da interoperabilidade e eficiência da gestão de riscos do mercado de pagamentos.
Em 2017, a promulgação da Lei nº 13.455/2017 e atos normativos regulamentadores
fomentaram a concorrência entre diferentes instrumentos de pagamento, ao autorizar a diferenciação
de precificação entre as diferentes modalidades e prazos de pagamento, estimulando especialmente
o uso do cartão de débito (Circular nº 3.887/2018), a partir da imposição de teto para tarifa de
intercâmbio de operações realizadas nessa modalidade (BRASIL, 2019, p. 20-21).
Em 2018, o CMN editou a Resolução nº 4.707/2018 para aperfeiçoar o mecanismo de trava
bancária e a utilização dos recebíveis como garantias nas operações de crédito. A regra estabeleceu
que o limite utilizado como garantia em operação de crédito contratado via antecipação de recebíveis
não poderia exceder o saldo devedor, além de permitir que o remanescente pudesse ser empregado
em novas operações de crédito, contribuindo para enfrentar a prática da trava do domicílio
bancário. Ademais, a regulamentação facilitou a portabilidade de crédito e flexibilidade para que os
estabelecimentos comerciais escolhessem os credenciadores e bancos na contratação de crédito via
antecipação de recebíveis, fomentando esse tipo de operação no mercado.
O Banco Central regulamentou a utilização dos recebíveis como garantia de crédito por
meio da Circular nº 3.928/2018, além da Circular nº 3.952/2019, estabelecendo que os recebíveis dos
25 Para uma análise das principais inovações regulatórias sob perspectiva normativa cf. NEASF (2019a) e NEASF (2019b).
26 Ver Resolução nº 4.282/2013, Circular nº 3.885/2018, 3.683/2013 e 3.721/2014.
27 Ver Resolução nº 4.707/2018, Circular n 3.928/2018 e Circular 3.854/2017.
157
varejistas fossem registrados em câmara registradora, independentemente do uso, com o objetivo de
viabilizar a existência de garantias robustas que, por outro lado, não prejudicassem as condições de
financiamento dos estabelecimentos comerciais.
Digno de nota ainda a Circular nº 3.854/2017 que estabeleceu a implantação efetiva da
liquidação centralizada de arranjos de pagamento na Câmara Interbancária de Pagamentos (CIP),
eliminando tratamento discriminatório na cobrança pela liquidação de valores praticada anteriormente
pelos agentes incumbentes que detinham câmaras próprias e praticavam preços diferentes para
concorrentes, o que acabava gerando custos diferenciados para os participantes do sistema.
Ainda em 2018, vale destacar a assinatura do Memorando de Entendimentos entre Cade e
Banco Central estabelecendo uma agenda de cooperação entre as autarquias, para regulamentar
de forma conjunta regras para análise de atos de concentração e apuração de infrações à ordem
econômica envolvendo entidades sujeitas à regulação do Banco Central. A principal novidade trazida
pelo memorando dizia respeito à prioridade do Banco Central para decidir atos de concentração
considerados sistematicamente relevantes.
Como fruto deste memorando, as autarquias aprovaram conjuntamente o Ato Normativo
Conjunto nº 1/2018 (BRASIL, 2018) estabelecendo procedimentos para coordenação das ações na
defesa da concorrência do Sistema Financeiro Nacional, a partir do compartilhamento de informações,
realização de reuniões entre os órgãos, regulamentação de procedimentos previstos para análise de
atos de concentração e investigação de condutas anticompetitivas.
A atuação regulatória do Banco Central a partir das normas expedidas teve efeitos importantes
no aumento da competitividade do setor. Nesse sentido, podem ser mencionados a ampliação dos
agentes não verticalmente integrados no mercado, a redução do prazo e do custo para antecipação
de recebíveis pelos estabelecimentos comerciais, com aumento da concorrência pela oferta desse
serviço, além da introdução de novos modelos de negócios pelas ntechs como a oferta de contas de
pagamento com cartões pré-pago, que contribuíram para a inclusão financeira de desbancarizados e
atendimento de varejistas com menor porte financeiro.
Além da regulação jurídica por meio de atividade normativa, as atuações de Cade e Banco
Central colaboraram para a abertura desse mercado ao intervir em práticas e políticas comerciais
com potencial anticompetitivo adotadas por agentes com poder econômico, contribuindo de
forma significativa para o aumento da competitividade do setor, tal como indicado pelos exemplos
mencionados. O próximo capítulo tem como objetivo destacar algumas dessas importantes atuações
a partir da descrição de casos analisados pelas autoridades.
5. A TRANSFORMAÇÃO NA INDÚSTRIA DE MEIOS DE PAGAMENTO NO BRASIL:
A ATUAÇÃO REGULATÓRIA E CONCORRENCIAL
No Brasil, o mercado de meios de pagamento eletrônico passou por profundas transformações
até que chegasse ao atual estágio. Embora desde 1954 o cartão de crédito estivesse disponível no
país, foi a partir da estabilização econômica decorrente da implementação do Plano Real que se
observou uma expansão dessa indústria, com crescimento do número de emissores de crédito aos
portadores via cartão e aceitação dos cartões de crédito no varejo (CAVALCANTI; SANTOS, 2020, p.
22-25). Vale destacar, no entanto, que até 2010, o mercado de credenciamento era formado por um
158
UEDA, Marcos Filipe Sussumu. Desafios regulatórios no setor financeiro: uma análise das
transformações promovidas por fintechs no mercado de meios de pagamento no Brasil. Revista
de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 11, n. 2, p. 143-171, 2023.
https://doi.org/10.52896/rdc.v11i2.1068
duopólio entre Redecard (atual Rede) e Visanet (atual Cielo).
A Redecard, empresa que tinha como principais acionistas as empresas Citibank, Itaú,e
Unibanco, era a credenciadora exclusiva para captura de transações realizadas por cartões com a
bandeira MasterCard, enquanto a Visanet, empresa que tinha como principais acionistas o Bradesco,
Banco do Brasil, ABN e Visa, tinha uma relação de exclusividade com a bandeira Visa, tornando a
estrutura de arranjos de pagamento verticalizada e criando barreiras à entrada para concorrentes no
segmento de credenciamento e bandeira (BCB, 2010).
Na prática, isso significava que cada estabelecimento comercial precisava contratar os serviços
de credenciamento e alugar os equipamentos de captura (popularmente chamadas maquininhas) de
Redecard e Visanet, para que pudesse aceitar cartões das bandeiras Master e Visa, respectivamente.
No contexto brasileiro, diversos estabelecimentos não tinham recursos para contratar os dois serviços
e o consumidor passava a ter menos opções para a realização de pagamentos utilizando o cartão
como meio de pagamento. Isso também implicava o fechamento do mercado de credenciamento,
uma vez que não havia outras bandeiras com capacidade para contestar Visa e Mastercard, o que
impedia o surgimento de concorrentes para Redecard e Visanet.
Em dezembro de 2009, a Visanet celebrou um Termo de Compromisso de Cessação (TCC)
com o Cade no âmbito do Processo Administrativo nº 08012.005328/2009-31, comprometendo-se a
encerrar a prática de exclusividade contratual existente com a bandeira Visa, de modo que outros
credenciadores pudessem aceitar a bandeira Visa e a Visanet aceitasse acordos com outras bandeiras.
Na oportunidade, a Mastercard já havia encerrado sua relação contratual de exclusividade junto à
Redecard, embora na prática ainda existisse uma exclusividade de fato (FROUFE, 2009).
A partir dessas investigações e elaboração de relatório conjunto entre Banco Central, Secretaria
de Direito Econômico (SDE) e Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE) sobre a indústria
de cartões de pagamento (2010), o Banco Central reconheceu diversos entraves concorrenciais no
setor, incluindo os acordos de exclusividade do segmento. Ainda assim, na oportunidade, o Banco
Central não supervisionava os arranjos de pagamento instituídos pelas bandeiras e instituições de
pagamento, por não serem enquadradas como instituições financeiras, sujeitas à sua regulação, que
somente veio a ocorrer com a promulgação da Lei nº 12.865/2013.
Por meio da Lei nº 12.865/2013, o Banco Central passou a exigir divulgação das regras
elaboradas pelas bandeiras na estruturação de seus arranjos de pagamentos. Desse modo, com o fim
da exclusividade contratual, a obrigação de multiadquirência e o aumento da transparência exigida
pelo Banco Central, estabeleceram-se as condições para abertura do mercado de credenciamento,
resultando na entrada de novas empresas, como a Stone, o PagSeguro e a GetNet
28
.
Não obstante, investigações posteriores conduzidas pelo Cade no mercado de meios de
pagamentos revelou que práticas comerciais anticompetitivas relacionadas aos acordos de exclusividade,
recusa de contratar, tratamento discriminatório e venda casada poderiam estar sendo exercidas por
empresas incumbentes e que deveriam ser objeto de maior aprofundamento (BRASIL, 2019).
O Caderno de Instrumentos de Pagamento elaborado pelo Cade (BRASIL, 2019, p. 102-138)
apresenta diversos exemplos de condutas anticompetitivas investigadas relacionadas a essas práticas
entre 1995 e 2019. Embora não tenham sido identificados casos de condenação nas 14 investigações
28 Em 2014, a GetNet teve seu controle adquirido pelo grupo Santander. Cf. Decloedt (2014).
159
instauradas, a maioria resultou em acordos administrativos por meio de TCCs, que incluíam dentre
outros compromissos, a cessação das práticas que estavam sendo investigadas, ainda que sem
confissão de culpa. Esses resultados indicam que a atuação da autoridade concorrencial foi relevante
para a disciplina de comportamentos dos agentes do setor, embora existam críticas relacionadas
à ausência de decisões de mérito finais que apresentassem com maior clareza e detalhamento o
entendimento que o Cade possui sobre as práticas investigadas.
A maioria das práticas investigadas tinha como ponto comum o tratamento discriminatório
baseado na existência de verticalização de alguns agentes econômicos, geralmente associados a
conglomerados financeiros de agentes incumbentes, que se utilizavam de sua estrutura e poder
financeiro para beneficiar empresas do seu próprio grupo a partir de condições comerciais mais
benéficas em comparação às condições aplicadas a seus concorrentes, que acabava por aumentar
seus custos de operação e/ou criavam incentivos econômicos para que os agentes da cadeia de
serviço e consumidores permanecessem contratando com as empresas verticalmente integradas dos
agentes incumbentes.
Em última análise, observa-se que essas práticas tinham como aspecto principal dificultar
que os clientes migrassem entre diferentes instituições bancárias e financeiras, criando mecanismos
que tornasse mais vantajoso contratar os produtos financeiros, sobretudo operações de crédito,
com as empresas de um mesmo grupo econômico, fenômeno viabilizado e reforçado pela atuação
verticalizada desses grupos na indústria dos instrumentos de pagamentos.
Como exemplos, é possível mencionar investigações que tiveram como objeto a operação
de antecipação de recebíveis, ativos oferecidos como garantias para contratação de operações de
crédito, sobretudo como capital de giro, mediante o pagamento de uma taxa de desconto incidente
sobre o valor antecipado. Com o encerramento da exclusividade entre bandeiras e credenciadoras,
estabeleceram-se condições para uma disputa entre credenciadoras com a diminuição das taxas
para antecipação de recebíveis, bem como problema de fragilização das garantias pela troca de
adquirentes pelos estabelecimentos comerciais, que foram enfrentadas por meio de autorregulação
a partir de mecanismos como a trava bancária. Nesse contexto estão inseridas as investigações
conduzidas pelo Cade.
No âmbito do Procedimento Preparatório nº 08700.000018/2015-11 instaurado em 2015, o Cade
investigou a imposição de dificuldades praticadas pelos principais bancos para impedir a leitura da
agenda de recebíveis (registro das vendas realizadas por operações de créditos pelos estabelecimentos
comerciais) de credenciadores menores não integrantes de seus grupos econômicos, informação
necessária para que os lojistas pudessem ter acesso a linhas de crédito mais baratas junto a outras
instituições. Assim, esses estabelecimentos que contratavam com credenciadores menores não
conseguiam antecipar seus recebíveis junto aos principais bancos, o que criava incentivos para que
contratassem serviços de credenciamento das empresas integrantes do grupo econômico desses
bancos, criando barreiras à entrada de concorrentes no segmento de adquirência.
O procedimento acabou sendo arquivado por meio de TCCs firmados com as investigadas Itaú
Unibanco S.A. e Hipercard Banco Múlitplo S.A., Elo Participações S.A. e Elo Serviços S.A., estabelecendo
a proibição de relações de exclusividade que inviabilizassem a participação de credenciadoras
concorrentes na captura de transações das bandeiras desses grupos, além de a obrigação de não
discriminar credenciadoras concorrentes para captura de transações realizadas com cartões de
160
UEDA, Marcos Filipe Sussumu. Desafios regulatórios no setor financeiro: uma análise das
transformações promovidas por fintechs no mercado de meios de pagamento no Brasil. Revista
de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 11, n. 2, p. 143-171, 2023.
https://doi.org/10.52896/rdc.v11i2.1068
créditos nos arranjos estruturados pelas bandeiras desses grupos.
Não obstante, considerando as informações recebidas no âmbito desse procedimento,
o Cade instaurou o Inquérito Administrativo nº 08700.001860/2016-51 em 2016, com o objetivo de
investigar outras práticas anticompetitivas voltadas ao fechamento do mercado de credenciamento,
a partir de práticas discriminatórias e recusa de contratar com credenciadoras concorrentes dos
grupos econômicos dos principais bancos.
As condutas investigadas tratavam da trava de domicilio bancário (como mecanismo de
impedir a migração de fluxo de recebíveis a outras instituições, mesmo sem operações de créditos
ativas a justificar sua utilização); práticas de retaliação (elevação de taxas de desconto e para operações
de crédito, aplicações de penalidades em caso de contratação de serviços com concorrentes) e venda
casada (obrigatoriedade de abertura de contas correntes como condição para aceitação de bandeiras);
discriminação da cobrança de tarifas de liquidação e de trava bancária (cobranças discriminatórias
baseadas em representatividade de volume transacionado que aumentava os custos incorridos pelos
agentes de menor porte); e contratos de incentivo (condições que aumentam os custos de saída dos
estabelecimentos comerciais).
O inquérito foi arquivado em razão da celebração de TCCs pelos grupos investigados, que
resultaram no recolhimento de contribuições pecuniárias, cessação das práticas investigadas,
combinado com compromissos de natureza comportamental, que visavam coibir práticas
discriminatórias e exclusionárias, para viabilizar a migração do fluxo de recebíveis entre diferentes
instituições, permitindo o desenvolvimento de agentes não verticalizados e oferecendo alternativas
de escolha aos estabelecimentos comerciais, além de estabelecer balizas fundadas em racionalidade
econômica e proporcionalidade relativamente às políticas comerciais sobre trava de domicílio
bancário, contratação conjunta de produtos e incentivos para fidelização do cliente.
Mais recentemente, em 2020, vale destacar a parceria comercial entre o Facebook (Meta)/
WhatsApp e a Cielo na plataforma WhatsApp que permite o pagamento de bens e serviços, bem como
a transferência de recursos entre usuários de WhatsApp, bastando a existência de uma conta bancária
atrelada a um cartão de débito, crédito ou múltiplo das bandeiras MasterCard ou Visa vinculada a um
dos bancos parceiros.
29
Na oportunidade, a parceria comercial chamou a atenção do Cade
30
e do Banco Central
31
,
29 O WhatsApp informa a seguinte lista de bancos parceiros: Banco BRB (débito Mastercard); Banco do Brasil (Visa);
Banco Inter (Mastercard); Banco Original (Mastercard); Bradesco (Visa); BTG+ (Mastercard); Caixa (débito virtual Visa); Itaú
(débito Mastercard e Visa); Mercado Pago (Visa); Neon (Visa); Next (Visa); Nubank (Mastercard); San-tander (Mastercard e
Visa); Sicoob (Mastercard); Sicredi (Mastercard e Visa); Woop (conta digital da Sicredi, Visa). Para mais informações sobre a
funcionalidade ver https://www.whatsapp.com/payments/br?lang=pt_br. Acesso em 22 nov. 2023.
30 O Cade divulgou comunicado informando sobre a imposição de medida cautelar para suspender a parceria anunci-
ada no Brasil, reproduzindo os seguintes fundamentos da decisão: “A despeito do estágio inicial de apuração dessa operação, há
potencialmente consideráveis riscos à concorrência que merecem ser mitigados ou evitados via inter-venção deste Conselho,
considerando que os efeitos podem derivar da operação em questão e causar danos irrepa-ráveis ou de difícil reversibilidade
nos mercados afetados. Ainda que não se tenha uma certeza sobre os efeitos, pelo dever de cautela, cabe adoção de ações
para resguardar a coletividade de possíveis efeitos negativos. Ver (CADE SUSPENDE..., 2022).
31 O Banco Central divulgou nota sobre a decisão de suspensão dos efeitos da parceria nos seguintes termos: "A mo-
ti-vação do BC para a decisão é preservar um adequado ambiente competitivo, que assegure o funcionamento de um sistema
de pagamentos interoperável, rápido, seguro, transparente, aberto e barato. A medida permitirá ao BC ava-liar eventuais riscos
para o funcionamento adequado do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB) e verificar a ob-servância dos princípios e das
regras previstas na Lei nº 12.865, de 2013. O eventual início ou continuidade das operações sem a prévia análise do Regulador
poderia gerar danos irreparáveis ao SPB notadamente no que se refere à competição, eficiência e privacidade de dados.". Ver
161
que suspenderam os efeitos da parceria anunciada em 15 de junho de 2020
32
, diante de potenciais
preocupações concorrenciais e regulatórias que poderiam decorrer desse acordo.
Embora posteriormente, Cade
33
e Banco Central
34
tenham autorizado o início da parceria
com a prestação da solução de pagamentos WhatsApp Pay (atual Meta Pay), vale destacar que as
motivações indicadas pelas autoridades indicaram preocupações com a preservação da estrutura e
condições competitivas do mercado de meios de pagamento, seja pela potencial produção de danos
irreversíveis ou de difícil reversibilidade nos mercados afetados, seja pela necessidade de preservar
um sistema de pagamento competitivo, interoperável, aberto, barato, seguro e transparente.
A medida cautelar imposta pelo Cade se baseou nos potenciais riscos concorrenciais
decorrentes da ausência de informações detalhadas sobre a operação, o porte e poder de mercado
das empresas envolvidas – parceria abrangia a líder do mercado de credenciamento no Brasil e
uma empresa com extensa base de clientes (120 milhões de usuários) – o histórico de investigações
sobre práticas anticompetitivas no mercado de meios de pagamento envolvendo a Cielo e a possível
existência de exclusividade contratual ou de fato que poderia resultar em condutas discriminatórias
e fechamento de mercado.
35
O comunicado do Banco Central que informou a suspensão da parceria anunciada para
análise, embora não mencione expressamente a preocupação com o início da vigência do Pix
36
– sistema de pagamentos instantâneos desenvolvido pelo Banco Central –, que ocorreria em
novembro de 2020 (de 4 a 5 meses após o anúncio oficial da parceria entre Meta/Facebook e Cielo),
fundamenta a necessidade de preservar um sistema de pagamentos aberto e competitivo. Além
das questões concorrenciais, o Banco Central parece ter tido uma preocupação regulatória com a
estrutura do mercado de meios de pagamentos, sobretudo em razão das mudanças promovidas
pelos instrumentos de pagamento instantâneos e o seu potencial transformador na indústria (KIRA;
GONÇALVES; COUTINHO, 2020).
A criação de um sistema controlado por agentes privados, que concorresse com o Pix poderia
frustrar a implementação do modelo de sistema aberto concebido pelo Banco Central para aumentar
a concorrência do mercado brasileiro.
37
Considerando os efeitos de rede decorrentes da adesão dos
(NOVA SOLUÇÃO..., 2020).
32 Cf. comunicado de mercado divulgado pela Cielo, disponível em: https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/4d1ebe-
73-b068-4443-992a-3d72d573238c/1e563289-a09a-e72a-ac1d-3ef76b1849b7?origin=1. Acesso em 22 nov. 2023.
33 Em 30/06/2020, o Cade divulgou comunicado esclarecendo que revogou a medida cautelar que suspendeu os efei-
-tos da parceria para operação do WhatsApp Pay diante das informações prestadas pelas empresas, que afastaram as preocu-
pações concorrenciais identificadas num primeiro momento, como a possível existência de exclusividade entre as empresas
e o fato de a operação associar a líder do mercado de credenciamento no Brasil (Cielo) com a base de usuários do WhatsApp
no Brasil (120 milhões, a segunda maior do mundo), que poderia resultar em preo-cupações de fechamento de mercado de
credenciamento e captura de transações. O Cade informou que ainda analisa a necessidade de as empresas notificarem a
operação para análise prévia. Ver (CADE REVOGA..., 2022).
34 Em 30/03/2021, o Banco Central divulgou nota informando a autorização para funcionamento da solução What-sApp
Pay, ressaltando, contudo, que os arranjos de compra, com a função de pagamentos de bens ou serviços em compras junto aos
estabelecimentos comerciais pela plataforma WhatsApp, ainda estão suspensos e se encontram sob análise do Banco Central.
Ver (BC AUTORIZA..., 2021).
35 Para mais detalhes ver Nota Técnica nº 6/2020/ SG (SEI 0770967) no âmbito do APAC nº 08700.002871/2020-34.
36 O Banco Central estabeleceu que a adesão ao Pix será obrigatória para as maiores instituições financeiras e de pa-
-gamentos (instituições autorizadas a funcionar pelo Bacen e que tenham mais de 500 mil contas de clientes ativas), com o
objetivo de que o Pix seja efetivamente ofertado a grande parcela da população. Ver (O QUE É PIX?, [2023]).
37 Conforme indicado pelo Banco Central (O QUE É PIX?, [2023]).
162
UEDA, Marcos Filipe Sussumu. Desafios regulatórios no setor financeiro: uma análise das
transformações promovidas por fintechs no mercado de meios de pagamento no Brasil. Revista
de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 11, n. 2, p. 143-171, 2023.
https://doi.org/10.52896/rdc.v11i2.1068
usuários a uma das plataformas, é provável que o Banco Central tenha se preocupado em garantir
que o Pix tivesse uma adesão grande por parte dos usuários brasileiros, evitando que sistemas de
pagamento fechado dominassem o mercado de pagamentos digitais.
Considerando o momento em que a operação do WhatsApp Pay (atual Meta Pay) foi autorizada
(4 meses após início de funcionamento do Pix), é razoável assumir que o Banco Central teve uma
preocupação quanto ao possível efeito dessa solução de pagamento na implementação do Pix,
dentre outras preocupações regulatórias como a segurança e o tratamento dos dados financeiros e o
grau de interoperabilidade da plataforma.
No cerne dessas preocupações, vale observar a experiência da China, em que o uso do dinheiro
físico migrou rapidamente para os pagamentos digitais por aplicativos de smartphones e captura de
transações por QR Code. O mercado de pagamentos digitais chinês é formado por um duopólio no qual
dois grandes conglomerados chineses controlam cerca de 92% do mercado de pagamentos digitais. O
Alipay, segmento financeiro do grupo Alibaba, lidera o mercado de pagamentos corporativo, enquanto
o WeChat Pay, empresa do grupo Tencent, lidera o mercado de transferências entre usuários. Em
conjunto, as carteiras digitais dessas empresas representam metade dos pagamentos realizados nas
lojas e quase três quartos das vendas online na China (THE FINANCIAL, 2020).
Assim, não é sem razão que Mazzucato (2018) adverte que a dinâmica expressa com a inovação
nos mercados, a partir da adoção antecipada de padrões e efeitos de rede que tendem para o domínio
de mercado, tem impactos significativos sobre como o valor criado é compartilhado e mensurado.
A autora entende o papel da regulação como um processo que deve ser conduzido no sentido de
produzir os melhores resultados para a sociedade. Verifica-se, portanto, um elemento valorativo
importante na decisão regulatória, que no caso dos meios de pagamento instantâneos, indica a
preferência regulatória por um sistema de pagamentos aberto e interoperável, privilegiando a entrada
de diferentes agentes e o aumento da competitividade no setor (KIRA; GONÇALVES; COUTINHO, 2020)
38
.
Assim, a atuação do Cade e do Banco Central no mercado brasileiro de meios de pagamento
são exemplos de como estruturas de mercado concentradas podem ser modificadas para aumentar
a competitividade do setor e fomentar o desenvolvimento de inovações tecnológicas na indústria.
A entrada de agentes econômicos, dispostos a investir em novas tecnologias, expansão de seus
negócios no Brasil e que tenham efetiva capacidade de acirrar a concorrência no mercado brasileiro,
precisam contar não apenas com segurança jurídica das regras do jogo, mas com a atenção e atuação
dos órgãos de regulação e concorrência acerca das estruturas de mercado em que se observam o
desenvolvimento das inovações.
Não é sem razão que o Banco Central tem se empenhado na implementação do Pix. O
potencial transformador do Pix é significativo, pois tende a modificar a indústria dos meios de
pagamento, promovendo novos modelos de negócios, a redução de custos da intermediação
financeira, a redução da dependência de serviços bancários tradicionais, os custos associados com a
38 Ao analisar a parceria entre Facebook e Cielo, os autores Kira, Gonçalves e Coutinho (2020) destacam dois princí-
pios regulatórios importantes para análise de mercados em que atuam grandes plataformas digitais. Primeiro, a garantia de
interoperabilidade que permita a concorrentes oferecer seus serviços na plataforma, além de contratar com ela, impedindo que
os proprietários da infraestrutura estabeleçam unilateralmente os padrões de interoperabili-dade. Em segundo, o princípio
da neutralidade tecnológica, impedindo que a regulação esteja orientada por um tipo particular de tecnologia e que direcione
o mercado para um modelo de negócios específico. Na opinião dos autores, o Pix seria “um instrumento fomentador da
interoperabilidade e neutralidade tecnológica no sistema brasileiro de pagamentos”, sendo um bom exemplo de infraestrutura
desenvolvida e administrada a partir da regulação estatal.
163
circulação da moeda física, bem como tende a substituir modalidades de pagamento e transferência
de recursos populares como boleto, cartão de débito, TED e DOC.
Com efeito, desde seu lançamento em novembro de 2020, o Pix tem sido amplamente
adotado no Brasil, especialmente pelas pessoas naturais, como meio de pagamento e transferência
de recursos. Segundo Relatório de Economia Bancária do Banco Central (BCB, 2022, p. 181), em
2022, o Pix superou a marca de R$ 24,1 bilhões de transações (ante R$ 9,4 bilhões em 2021), com
volume de R$ 10,9 trilhões (ante R$ 5,2 trilhões em 2021). Ainda segundo o Relatório (BCB, 2022, p.
191), a utilização do Pix para recebimento de recursos por parte de empresas, negócios informais
e entes governamentais apresentou crescimento expressivo em 2022, representando 57% das
transações recebidas e liquidadas, e tendo como maior adesão os empreendimentos de pequeno
porte, especialmente do comércio varejista e de alimentação. Em termos regionais, a região Norte,
seguida pela Centro-Oeste, apresentaram maior crescimento na utilização do Pix para recebimento
de recursos relativamente à população.
A atuação do Banco Central tem indicado uma crescente convergência entre a regulação
e a concorrência, no sentido de que a implementação de políticas regulatórias com fomento da
concorrência, diminuição de barreiras à entrada e concentração bancária podem implicar maior
estabilidade financeira ao sistema. Interessante notar que essa aproximação diverge historicamente
da associação entre concentração bancária e estabilidade financeira (TAKAR, 2017).
39
Não obstante, embora as ntechs tenham promovido maior competitividade, inclusão
financeira e acesso ao crédito atendendo diferentes perfis de consumidores e introduzindo novos
modelos de negócios, produtos e serviços, também é verdade que impõem novos riscos e incertezas
que podem vir a impactar a estabilidade financeira do sistema no futuro, devendo ser objeto de
análise prospectiva da regulação prudencial e sistêmica (VIANNA, 2019, p. 93-94). Especificamente no
mercado de instrumentos de pagamento, a regulação setorial
40
exige que o SPB observe parâmetros
de segurança, integridade e confiabilidade das câmeras e dos prestadores de serviços das atividades
de compensação e liquidação, no qual:
[...] deve, assim, haver um necessário equilíbrio entre todos os princípios aplicáveis
ao setor, o que pode signicar, na prática, a aceitação de um nível menor de
concorrência em relação às infraestruturas de pagamento, para não se colocar em
risco sua segurança, integridade e conabilidade (HELLWIG, 2023, p. 408).
Assim, com o objetivo de prevenir riscos de caráter sistêmico, diversas autoridades
passaram a instituir ferramenta regulatória denominado sandbox regulatório, dada seu caráter
experimentalista, que confere flexibilidade para permitir a adaptação do arcabouço normativo
regulatório em face das mudanças promovidas pela tecnologia, de maneira a mitigar a ocorrência de
desconexão regulatória e, por conseguinte, reduzir riscos sistêmicos, enquanto fomenta a inovação
tecnológica e a competitividade no mercado (VIANNA, 2019, p. 119). O próximo capítulo tem com
objetivo abordar como essa ferramenta tem sido utilizada no Brasil como forma de enfrentar o
39 A concentração aumenta o nível de segurança do sistema bancário porque minimiza principalmente o risco de
pequenas instituições quebrarem em momentos de crise ou de grande desconfiança no mercado. Por outro lado, uma menor
quantidade de bancos restringe as opções para empresas e pessoas conseguirem empréstimos para consumir ou investir na
produção.
40 Art. 3º da Resolução CMN nº 4.952/2021.
164
UEDA, Marcos Filipe Sussumu. Desafios regulatórios no setor financeiro: uma análise das
transformações promovidas por fintechs no mercado de meios de pagamento no Brasil. Revista
de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 11, n. 2, p. 143-171, 2023.
https://doi.org/10.52896/rdc.v11i2.1068
desafio de equilibrar concorrência, inovação e estabilidade sistêmica, tomando como análise de
caso projetos relacionados ao setor de instrumentos de pagamento.
6. O USO DO SANDBOX REGULATÓRIO NO SETOR DE PAGAMENTOS NO
BRASIL
O Banco Central tem adotado o sandbox regulatório como parte das iniciativas adotadas
para fomentar a competitividade do setor financeiro, conforme previsto no planejamento estratégico
indicado na Agenda BC #. Adicionalmente, na dimensão de competitividade da agenda, outras duas
iniciativas em curso, o Pix e Open Finance, estão sendo implementadas.
O instituto do sandbox tem sido adotado como instrumento regulatório por diversas
jurisdições
41
, sobretudo no mercado financeiro, justamente pela capacidade de antecipar
tendências, identificar perfis de modelos inovadores que estão surgindo no mercado, bem como
monitorar o seu funcionamento, fornecendo informações para um processo fundamentado de
escolhas regulatórias (FCA, 2015, p. 2)
42
.
O sandbox é um conceito apropriado da ciência da computação, que tem como premissa
o experimentalismo regulatório e implica a criação e utilização de um ambiente controlado para a
realização de testes, protegendo o sistema dos potenciais danos decorrentes da implementação de
novas soluções no ambiente. O sandbox, como instrumento de regulação no setor financeiro, tem
como principal objetivo fomentar a inovação financeira e aumentar a competitividade, ao mesmo
tempo em que assegura a estabilidade financeira e o equilíbrio sistêmico do setor
43
.
Na prática, trata-se de uma ferramenta regulatória que viabiliza experimentos, como permitir
a oferta de produtos e serviços ao público, por período limitado (caráter temporário), sem que as
empresas estejam expostas às restrições e consequências da regulamentação vigente (isenção
regulatória temporária). Esse modelo tem sido utilizado para testar o uso de novas tecnologias e soluções
de produtos e serviços desenvolvidos e seus impactos em um cenário controlado (monitoramento
constante e delimitação do escopo e exigência de salvaguardas), que permita aos agentes privados e
ao agente regulador aprender mais rapidamente com os eventuais fracassos, as tendências de mercado
e riscos regulatórios e sistêmicos decorrentes, reduzindo o tempo para compreensão, maturação e
implementação das soluções desenvolvidas no mercado (VIANNA, 2019, p. 128-133).
A utilização do sandbox regulatório cria um espaço de colaboração entre os agentes
41 Além do Reino Unido, onde o sandbox regulatório teve sua origem, esse instrumento regulatório é utilizado na Aus-
trália, Canadá, e em alguns países da África e do Oriente Médio. Ver (SANDBOX REGULATÓRIO, [2023]).
42 O Reino Unido foi a primeira jurisdição a implementar o sandbox regulatório. Em 2015, o Financial Conduct Au-
thority (FCA), órgão regulador financeiro do Reino Unido, publicou um estudo denominado “Regulatory Sandbox”, que deniu
o sandbox nos seguintes termos: “A regulatory sandbox is a ‘safe space’ in which businesses can test innovative products,
services, business models and delivery mechanisms without immediately incurring all the normal regulatory consequences of
engaging in the activity in question” (FCA, 2015, p. 1).
43 “É no contexto de inovação rápida e constante que o regulador financeiro procura se posicionar, com foco em uma
regulação equilibrada que, de um lado, não iniba as inovações, mas, de outro, não enseje riscos desproporcionais para os
usuários e clientes e para a estabilidade do sistema financeiro. No rol de alternativas do regulador diante desse desafio
destacam-se, dentre outras, a constituição de ambientes controlados para testes no mercado de mode-los de negócio
inovadores também do ponto de vista normativo (Sandbox regulatório), integração do menu de li-cenças para funcionamento
aos modelos de negócio efetivamente praticados, criação de licenças específicas, regu-lação de parcerias entre ntechs
e instituições financeiras e a adaptação das normas gerais de funcionamento e de atendimento e relacionamento com os
clientes e usuários para o ambiente digital e virtual” (BCB, 2021, p. 170).
165
envolvidos, proporcionando benefícios para as empresas, agentes reguladores e, indiretamente, aos
consumidores, sob a forma de produtos e serviços melhores. Sob a perspectiva das empresas, o
instrumento resulta em significativa redução de custos e riscos empresariais e regulatórios, uma vez
que as empresas podem testar provisoriamente produtos e serviços, sem se sujeitar imediatamente
às limitações e burocracias das normas vigentes, bem como obter orientações a respeito da
regulamentação da atividade que, em tese, tende a diminui os riscos relacionados à insegurança
jurídica e pode facilitar a captação de investimentos por essas empresas no mercado (RANGEL, 2022,
p. 157; MOURA; COSENTINO, 2019;).
Esse modelo favorece especialmente empreendedores que assumem o risco atrelado ao
investimento em inovação e precisam validar o modelo de negócio por meio de sua implementação
efetiva, fornecendo produtos e serviços temporariamente a clientes reais, como é o caso de diversas
ntechs. Para o agente regulador, o uso do sandbox permite o acesso antecipado à tecnologia em
sua fase de desenvolvimento, permitindo compreender melhor o modelo de negócios, antecipar os
potenciais riscos no mercado, fornecendo informações para o processo de decisão regulatória, seja
pela necessidade de mudanças, adaptações ou manutenção das normas vigentes (RANGEL, 2022, p.
157; MOURA; COSENTINO, 2019).
Ao fomentar a inovação, a cooperação entre agentes públicos e privados, além de prover um
ambiente para o monitoramento de riscos sistêmicos, o modelo do sandbox regulatório tem sido
adotado por outras jurisdições como resposta aos desafios impostos pelas constantes transformações
observadas nos mercados financeiros, uma vez que ajuda a mitigar a diferença entre as mudanças
decorrentes das inovações tecnológicas e as escolhas regulatórias adotadas.
No Brasil, a implementação e fiscalização das normas regulatórias no setor financeiro
compreende diferentes agentes reguladores especializados, como o Banco Central (sistemas financeiro
e de pagamentos), a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) (mercado de capitais) e a Superintendência
de Seguros Privados (SUSEP) (seguros privados). Assim, no contexto brasileiro, um dos principais
desafios é o desenvolvimento de um ambiente regulatório do mercado financeiro que seja integrado
e não resulte em regras, exigências e diretrizes conflitantes, que aumentem a insegurança jurídica do
setor e dificultem o desenvolvimento de uma abordagem regulatória flexível, uniforme, de integração
e equidade para aplicação da regulamentação (BARBOSA, 2019 apud RANGEL, 2022, p. 159).
Ao que tudo indica, os agentes envolvidos estão atuando para atender a esse desafio, a
exemplo do comunicado conjunto assinado em 13 de junho de 2019, pela Secretaria da Fazenda do
Ministério da Economia, o Banco Central, a CVM e a SUSEP, tornando pública a intenção de implementar
um modelo de sandbox regulatório no Brasil. Cada um dos órgãos reguladores é responsável por
avaliar projetos que estão sob sua competência regulatória, havendo previsão de coordenação de
projetos que tratem de produtos ou serviços que afetem a esfera regulatória de mais de um dos
agentes reguladores mencionados.
44
O instituto do sandbox foi previsto na Lei Complementar 182/2021
que estabeleceu os parâmetros legais para implementação de ambiente regulatório experimental
no Brasil
45
e, para essa finalidade, permitiu que entidades reguladoras afastassem a incidência de
44 Esses programas foram estruturados a partir de relatório contendo diretrizes gerais elaborado pelo grupo de trabalho
sobre ntechs do Laboratório de Inovação Financeira (LAB), projeto envolvendo a Associação Brasileira de De-senvolvimento
(ABDE), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a CVM. O relatório foi apresentado em 2019 e está disponível em
(LAB, 2019).
45 Art. 2º Para os efeitos desta Lei Complementar, considera-se: II - ambiente regulatório experimental (sand-box
166
UEDA, Marcos Filipe Sussumu. Desafios regulatórios no setor financeiro: uma análise das
transformações promovidas por fintechs no mercado de meios de pagamento no Brasil. Revista
de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 11, n. 2, p. 143-171, 2023.
https://doi.org/10.52896/rdc.v11i2.1068
normas sob sua competência relativamente às entidades reguladas
46
.
Especificamente no caso do Banco Central, o sandbox regulatório teve início em 2021
47
e
contou com um total de 52 projetos inscritos no primeiro trimestre do ano, que serão analisados e
selecionados por um Comitê Estratégico de Gestão
48
, a partir de parâmetros definidos pelo Banco
Central.
49
No relatório de gestão da 1ª edição do sandbox, o Banco Central selecionou sete projetos
que se enquadravam nos temas prioritários estabelecidos pela autarquia voltados para oferta de
crédito, mercado de capitais, inclusão financeira, câmbio, Pix, Open Finance, finanças sustentáveis e
aumento de competição no SPB e no SFN (BCB, 2022b, p. 6)
50
.
Dentre os projetos autorizados a participar do sandbox regulatório relacionados a
experimentalismos no setor de pagamentos, destaca-se aplicação destinada a realizar operações
de pagamento na modalidade crédito, à vista ou de forma parcelada sem juros, utilizando as
funcionalidades do Pix, viabilizando a aquisição de bens e serviços com a utilização do cartão de
crédito mediante leitura de QR Code gerado por aplicativo de smartphone (BCB, 2022b, p. 12).
A solução permitirá que o estabelecimento comercial receba os recursos de forma simultânea
e à vista o que tende a reduzir custos para estabelecimentos que realizam a antecipação de recebíveis
das vendas realizadas na modalidade crédito e que necessitam dos recursos em conta para financiar
suas operações, tornando essa operação mais competitiva no mercado.
Outro projeto selecionado consiste em plataforma para movimentação de valores entre
duas ou mais contas, mediante a transferências de recursos para contas temporárias ou de
liquidação para realização de pagamentos diferidos, condicionadas por cláusulas suspensivas, a
partir do desenvolvimento de soluções que aumentam a segurança para realização desse tipo de
transações (BCB, 2022b, p. 14).
regulatório): conjunto de condições especiais simplificadas para que as pessoas jurídicas participantes possam receber
autorização temporária dos órgãos ou das entidades com competência de regulamentação setorial para desenvolver modelos
de negócios inovadores e testar técnicas e tecnologias experimentais, mediante o cumprimento de critérios e de limites
previamente estabelecidos pelo órgão ou entidade reguladora e por meio de procedimento facilitado.
46 Art. 11. Os órgãos e as entidades da administração pública com competência de regulamentação setorial poderão,
individualmente ou em colaboração, no âmbito de programas de ambiente regulatório experimen-tal (sandbox regulatório),
afastar a incidência de normas sob sua competência em relação à entidade regulada ou aos grupos de entidades reguladas
47 Os requisitos para instauração e execução pelo Bacen do Ciclo 1 do Sandbox Regulatório foram regulamentados pela
Resolução nº 50/20. Ver Resolução BCB n° 50 de 16/12/2020. Acesso em 22 nov. 2023.
48 O Comitê foi instituído pela Resolução nº 77/21 e é formado por diferentes chefes de departamento do Bacen. Entre
as competências consta a autorização para participação de entidades no projeto; a requisição de informações complementares
dos projetos inscritos; deliberação sobre adoção ou alteração de requisitos técnicos, operacionais, ou de negócios dos
projetos selecionados e organizacionais dos participantes; elaborar relatório com o resumo das deliberações adotadas e o
desempenho dos projetos em curso; decidir sobre o cancelamento de projetos. Ver (SANDBOX REGULATÓRIO, [2023]).
49 Diversas entidades, ainda que não reguladas pelo Banco Central, como associações, cartórios, empresas estatais e
privadas podem inscrever projetos. Contudo, é necessário que esses projetos se enquadrem dentro do conceito de projeto
inovador definido pelo Banco Central e estejam compreendidos na competência regulatória do Banco Cen-tral ou do CMN,
entre outros requisitos. No decorrer do ciclo de acompanhamento dos projetos, o Banco Central avaliará se os resultados
são satisfatórios, podendo ainda determinar ajustes e impor limites à execução, a partir da avaliação da complexidade e dos
riscos de cada projeto. Ao final do ciclo, os participantes terão a chance de obter autorização definitiva para operação e os
projetos desenvolvidos serão utilizados para aprimoramento da regula-mentação do Banco Central e do CMN. Ver (SANDBOX
REGULATÓRIO, [2023]).
50 Os temas prioritários incluem fomento ao mercado de capitais relaciona ao mercado de crédito; oferta de crédito
para microempreendedores e empresas de pequeno porte; soluções para o mercado de câmbio, Open Finance; Pix ou para
mercado de crédito rural; soluções para aumento de competição no SFN e no SPB; soluções financeiras e de pagamento com
estímulo à inclusão financeira; fomento às finanças sustentáveis.
167
Destaca-se ainda projeto estruturado por instituição de pagamento, mediante a qual
serão implementadas rede de pontos físicos relativos a parceiros comerciais para recepção de
recursos em espécie de titulares de contas de pagamento, que atualmente não é permitido pela
regulamentação vigente (BCB, 2022b, p. 12).
A solução tende a promover inclusão financeira e acesso, especialmente para pequenos
comerciantes e empresas de pequeno porte que costumam trabalhar com dinheiro em espécie e
são titulares de contas de pagamento. Atualmente, o aporte de recursos em espécie em conta de
pagamento somente pode ser realizado mediante quitação de boleto bancário na rede de agências
ou em correspondentes bancários. O projeto prevê a atuação de varejistas físicos e similares como
receptores desses recursos, o que tende a aumentar a capilaridade e acesso dessas operações para
esses agentes, além de prover fontes adicionais de renda a estabelecimentos comerciais físicos.
Esses projetos constituem exemplos de iniciativas em fase experimental que estão sendo
supervisionadas pelo Banco Central. Caso essas soluções se mostrem efetivas sob orientações do Banco
Central é possível que sejam implementadas em caráter permanente pelos participantes do mercado.
Interessante notar como o instituto do sandbox regulatório permite com que soluções
não permitidas ou não previstas pela regulamentação aplicável, sejam testadas em ambiente
controlado, sem que seja necessário aguardar os procedimentos da discussão e aprovação de novas
regulamentações, além de diminuir os custos regulatórios incorridos pelos agentes econômicos.
Abre-se a possibilidade de obter uma visão prospectiva sobre tendências de mercado e
antecipar riscos regulatórios decorrentes das soluções em desenvolvimento, permitindo melhor
entendimento e escolhas regulatórias mais céleres pelo regulador ao avaliar a suficiência do arcabouço
normativo-regulatório, ao mesmo tempo em que se mitigam os riscos à estabilidade financeira e
equilíbrio sistêmico dado o escopo limitado dos testes e constante supervisão e monitoramento
realizados sobre os comportamentos da atividade.
No âmbito dos meios de pagamento, ainda é cedo para avaliar se os resultados decorrentes
da implementação do sandbox regulatório são satisfatórios, mas o cenário é promissor e se espera
que o amadurecimento da iniciativa gere resultados que levem à aprimoração da legislação e ao
aumento de participação de mais interessados. Caso bem-sucedido é possível pensar na aplicação
dessa abordagem regulatória experimental em outros âmbitos no Brasil como ferramenta de fomento
de inovação e cooperação público-privada.
CONCLUSÃO
Nos últimos anos, diversos segmentos do mercado financeiro, caracterizados por elevadas
barreiras à entrada, experimentaram a entrada de agentes inovadores, capazes de introduzir novos
modelos de negócio e acirrar a concorrência. O surgimento e crescimento das chamadas ntechs têm
contribuído significativamente para transformações observadas no setor financeiro e de pagamentos.
Considerando as razões que levaram o sucesso de diversas ntechs, verificou-se que essas
empresas conseguiram identificar oportunidades comerciais que não estavam sendo devidamente
aproveitadas pelos bancos tradicionais, em função de sua estrutura, porte e sistema, que tornaram
a adaptação mais difícil às constantes mudanças observadas no setor financeiro. Dessa forma,
168
UEDA, Marcos Filipe Sussumu. Desafios regulatórios no setor financeiro: uma análise das
transformações promovidas por fintechs no mercado de meios de pagamento no Brasil. Revista
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https://doi.org/10.52896/rdc.v11i2.1068
diversos bancos têm optado por adquirir ntechs e startups de tecnologia ou estabelecer parcerias
ao invés de criar uma estrutura do início ou alterar significativamente sua atual estrutura bancária,
de maneira a se adaptar mais rapidamente a essa nova realidade.
Nesse cenário, um movimento de aproximação entre as ntechs e os bancos por meio
de parceiras, contratação de serviços e aquisições pode suscitar preocupações regulatórias e
concorrenciais, especialmente nas situações em que estejam envolvidos entrantes que apresentam
maior potencial de consolidação e crescimento em segmentos mais rentáveis aos bancos. Por outro
lado, altos custos regulatórios e a presença de incumbentes fortemente estabelecidos apontam
dificuldades para expansão e aumento da representatividade das ntechs em diversos segmentos
do mercado financeiro.
A estrutura concentrada de crédito no Brasil, em torno dos incumbentes que atualmente têm
suas posições contestadas por novos agentes e o alto custo de capital para financiamento das ntechs
apontam para potenciais linhas de investigação, sobretudo para identificar se existe alguma relação
entre a dificuldade de crescimento das ntechs e a alta concentração bancária, se as incumbentes podem
limitar a concessão do crédito como mecanismo de impedir o crescimento de rivais ou estabelecer
condições que permitam exercer algum tipo de influência sobre esses agentes, por exemplo.
Além disso, as complexas e aceleradas mudanças desencadeadas pelas inovações
tecnológicas no setor financeiro têm apresentado novos desafios aos reguladores do mundo todo, de
modo a fomentar um ambiente competitivo e inovador sem comprometer a estabilidade sistêmica.
A utilização do sandbox regulatório tem se mostrado um instrumento promissor para o exercício
de uma regulação dinâmica. A isenção temporária ao cumprimento das normas vigentes reduz
importantes custos regulatórios de entrada e de conformidade, sobretudo para empresas voltadas
para a inovação de produtos, com exposição relevante ao risco e ainda não consolidadas no mercado,
como é o perfil da maioria das startups financeiras e ntechs, que podem testar produtos com maior
segurança jurídica, além de facilitar a obtenção de financiamento (funding) para projetos inovadores.
Por derradeiro, a análise do mercado de meios de pagamento demonstrou que a progressiva
desconcentração do setor foi possível graças às intervenções no âmbito regulatório (pelo Banco
Central) e concorrencial (pelo Cade), facilitando a entrada no mercado de novas empresas, com
destaque para entrada de agentes não bancarizados que passaram a ter condições de ofertar
alternativas aos serviços bancários, contribuindo para o avanço da inclusão financeira no Brasil e
aumento da competitividade no setor.
O equilíbrio entre concorrência e estabilidade financeira vem sendo perseguido com resultados
concretos, conforme ilustrado pela atuação dos órgãos de regulação e concorrência, ainda que, no
curto prazo, mudanças estruturais mais profundas ainda não tenham sido observadas. Contudo, novas
iniciativas baseadas em abordagem regulatória experimental, a partir da implementação do sandbox
regulatório, apresenta um caminho promissor para o desenvolvimento de mercados mais competitivos
e inclusivos, além de mais preparados para antecipar e reagir a eventuais riscos sistêmicos trazidas
pelas transformações decorrentes das inovações e atuação de novas empresas no mercado.
169
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