228
SOUZA, Danielle Kineipp de; CRAVEIRO, Priscilla. Novos desafios, novos remédios: as obrigações
negociadas pelo Cade nos TCCs celebrados com Gympass e iFood em investigações envolvendo
acordos de exclusividade. Revista de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 12, n. 1, p. 228-246,
2024.
https://doi.org/10.52896/rdc.v12i1.1080
10
NOVOS DESAFIOS, NOVOS
REMÉDIOS: AS OBRIGAÇÕES
NEGOCIADAS PELO CADE
NOS TCCs CELEBRADOS
COM GYMPASS E IFOOD
EM INVESTIGAÇÕES
ENVOLVENDO ACORDOS DE
EXCLUSIVIDADE
1
New challenges, new remedies: the commitments
negotiated by Cade in the settlement agreements
signed with Gympass and iFood in exclusive
dealing agreements investigations
Danielle Kineipp de Souza
2
Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) – Brasília/DF, Brasil
Priscilla Craveiro
3
Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) – Brasília/DF, Brasil
RESUMO ESTRUTURADO
Contexto: há muito tempo, o Cade investiga abuso de poder dominante por meio da adoção de
acordos de exclusividade, mas recentemente a análise antitruste desse tipo de prática ganhou
novos contornos. O direito da concorrência não considera acordos de exclusividade ilícitos per se,
pois reconhece que podem apresentar eficiências importantes, como evitar o efeito carona nos
investimentos feitos no parceiro e reduzir custos de transação. Historicamente, precedentes do Cade
em que houve assinatura de Termo de Compromisso de Cessação (TCC) ou proibiram tais acordos ou
estabeleceram, como obrigação central, limites para sua adoção. Os TCCs recentemente celebrados
Editor responsável: Prof. Victor Oliveira Fernandes, Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), Brasília, DF, Brasil.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5250274768971874. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5431-4142.
1 Recebido em: 01/12/2023 Aceito em: 11/06/2024 Publicado em: 19/06/2024
2 Mestre em Economia pela Universidade de Brasília (UnB). Pós-Graduada em Direito Concorrencial e Econômico (FGV).
Economista pela UnB. Coordenadora de Análise Antitruste na Superintendência-Geral do Cade. Servidora pública, carreira de
Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental.
E-mail: danielle.souza@cade.gov.br Lattes: http://lattes.cnpq.br/1813526185448725
ORCID: https://orcid.org/0009-0000-0499-0169
3 Especialista em Defesa da Concorrência e Direito Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (FGV – Brasília). Bacharel
em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB). Servidora pública da carreira de Especialista em Políticas
Públicas e Gestão Governamental desde 2011, com atuação no Cade desde 2016. Já trabalhou na persecução a carteis e condutas
unilaterais, como Coordenadora no Programa de Leniência e, atualmente, atua na análise de atos de concentração.
E-mail: priscilla.campos@cade.gov.br Lattes: http://lattes.cnpq.br/9435780300982606
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7178-7080
229
com Gympass e iFood, players de mercados digitais, incluíram um elemento a mais: o compromisso
de desempenho.
Objetivo: este artigo objetiva apresentar as mudanças na abordagem de compromissos de
exclusividade pelo Cade e as razões que justificaram as inovações trazidas pelos TCCs do Gympass e
do iFood.
Método: usando o método comparativo, traçou-se um paralelo entre os TCCs recentemente firmados
com as duas plataformas digitais e aqueles celebrados na década passada com Souza Cruz e Ambev
Conclusões: verificou-se que a adoção de compromissos de desempenho nos novos TCCs significou
avanço e inovação importantes na abordagem de acordos de exclusividade. Tais compromissos
estabelecem metas claras e objetivas de crescimento dos parceiros exclusivos como resultado dos
investimentos realizados pelas compromissárias, de modo a garantir que as eficiências decorrentes da
exclusividade superem os efeitos da restrição. Sua adoção dissipa os riscos concorrenciais inerentes
à prática sem trazer prejuízos à capacidade de inovação dos mercados envolvidos.
Palavras-chave: antitruste; acordos de exclusividade; mercados digitais; termo de compromisso de
cessação; compromisso de desempenho.
STRUCTURED ABSTRACT
Context: abuse of dominant power through the adoption of exclusive dealing agreements has long
been investigated by Cade, but recently the antitrust analysis of this type of practice has gained
new contours. Competition law does not consider exclusive dealing agreements illegal per se,
as it recognizes that they can provide important eciencies, such as avoiding the free-riding on
investments made in the exclusive partner and reducing transaction costs. Historically, Cade's
precedents in which a Settlement Agreement (TCC, in its acronym in Portuguese) was signed either
prohibited such agreements or established, as a central obligation, a cap for its adoption. The TCCs
recently signed with Gympass and iFood, digital market players, included an additional element: the
performance commitment.
Objective: this article aims to present the changes in Cade's approach to exclusive dealing agreements
and the reasons that justified the innovations brought by the recent TCCs.
Method: using the comparative method, a parallel was drawn between the TCCs recently signed with
the two digital platforms and those signed in the last decade with Souza Cruz and Ambev.
Conclusions: it was possible to verify that the adoption of a performance commitment in the TCCs
recently signed by Cade with Gympass and iFood brought important progress and innovation in the
approach to exclusive dealing agreements. Such commitments establish clear and objective growth
targets for the exclusive partners as a result of the investments made by the Party, in order to ensure
that the eciencies resulting from exclusivity outweigh the eects of the restriction. Its adoption
dissipates the competitive risks inherent to the practice without harming the innovation capacity of
the markets involved.
Keywords: antitrust; exclusivity agreements; digital markets; settlement agreement; performance
commitments.
Classificação JEL: K21 – Antitrust Law; L40 – General; K40 – General
Sumário: 1. Introdução; 2. Exclusividade em geral
230
SOUZA, Danielle Kineipp de; CRAVEIRO, Priscilla. Novos desafios, novos remédios: as obrigações
negociadas pelo Cade nos TCCs celebrados com Gympass e iFood em investigações envolvendo
acordos de exclusividade. Revista de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 12, n. 1, p. 228-246,
2024.
https://doi.org/10.52896/rdc.v12i1.1080
e em plataformas digitais; 3. Precedentes do Cade
com assinatura de TCCs; 4. Os TCCs mais recentes e os
compromissos antitruste acordados; 5. Considerações
Finais. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Historicamente, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) tem desempenhado
um papel fundamental na promoção da concorrência e na prevenção de práticas anticompetitivas
que prejudicam o mercado e os consumidores. Condutas unilaterais têm sido alvo de atenção
especial na atuação recente do órgão, em resposta ao aumento em volume e relevância de casos
investigados e em atenção a recomendações exaradas em Peer Review publicado pela Organização
para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)
4
.
Tais condutas, como infrações à ordem econômica, possuem como característica a
complexidade da análise e maior dificuldade de comprovação, dado que são consideradas ilícitos
por efeitos e não por objeto e, por conseguinte, sopesadas pela ótica da regra da razão.
A análise se torna mais complexa quando envolve, a exemplo de casos recentes que
serão apresentados neste artigo, condutas de exclusividade em mercados de plataformas digitais.
Investigações nesses mercados tendem a envolver aspectos não triviais, como a existência de
significativas externalidades de rede, que podem indicar que um aumento no nível de concorrência
não necessariamente irá significar uma estrutura de preços mais eficiente ou maior excedente para
todos os lados da plataforma (WRIGHT, 2004). Além disso, esse tipo de conduta requer uma análise
caso a caso para os efeitos da exclusividade - contratual e “de fato” - no bem-estar e na concorrência,
uma vez que pode gerar tanto eficiências quanto prejuízos ao mercado (KATZ, 2017).
Nesse contexto, a adoção de instrumentos consensuais, como os termos de compromisso
de cessação (TCC)
5
do direito antitruste, pode se mostrar como alternativa mais célere e menos
dispendiosa para que a administração pública seja capaz de atingir seus objetivos de prevenir e/ou
reprimir esse tipo de infração.
Os TCCs negociados com as plataformas Gympass e iFood - recentemente homologados
pelo Tribunal do Cade - representam, na opinião das autoras, avanços na abordagem de condutas
de exclusividade quando comparados a outros acordos firmados no passado pela autarquia em
investigações de mesma natureza. Isso não só pelo fato de envolverem plataformas digitais – e
portanto, mercados de inovação, com relevantes externalidades de rede, barreiras naturais à entrada
de novos players – como também pelo fato de ter sido empreendida uma análise mais pormenorizada
em relação às eficiências decorrentes da prática de exclusividade, especialmente no que concerne
às contrapartidas ofertadas aos parceiros para que estes limitassem suas transações comerciais às
plataformas das Requerentes.
4 O Peer Review da OCDE recomendou que o Cade priorizasse investigações de condutas de abuso de posição
dominante, por meio da criação de equipes dedicadas a esse tipo de prática e da contratação de mais PhDs em Economia. Além
disso, recomendou que o Cade celebrasse menos Termos de Compromisso de Cessação (TCCs), de modo a gerar jurisprudência
relacionada a condutas de abuso de posição dominante (OCDE, 2019, p. 165).
5 Previstos na Lei nº 12.529/2011 em seu artigo 85 (BRASIL, 2011).
231
Como contraponto da análise, foram escolhidos dois precedentes que envolvem acordos
de exclusividade, que culminaram com a assinatura de TCC: as investigações que tinham como
representadas a Souza Cruz e a Ambev. A escolha desses dois cases deveu-se ao fato de serem
dois exemplos de intervenções distintas do Cade em âmbito de solução negociada, para endereçar
riscos concorrenciais semelhantes de fechamento de mercado a partir da utilização de acordos de
exclusividade.
6
No primeiro, conforme se verá adiante, o Cade adotou postura mais conservadora,
decidindo pela proibição total das cláusulas de exclusividade de merchandising (a vedação
à exclusividade de venda já fora adotada em processo anterior envolvendo a Representada). No
segundo precedente, por sua vez, a autarquia limitou sem, contudo, impedir completamente esse tipo
de acordo, reconhecendo eventuais eficiências decorrentes de sua adoção.
Diante do exposto, vamos apresentar o presente artigo em três seções, além da introdução
e da conclusão, demonstrando como a análise de condutas relacionadas a acordos de exclusividade
pela autoridade antitruste evoluiu ao longo da última década e o impacto disso no estabelecimento
de obrigações em sede de TCCs. A primeira seção detalhará aspectos da conduta de adoção de acordos
de exclusividade de forma geral e no escopo de plataformas digitais. A segunda seção apresentará
dois precedentes (Souza Cruz e Ambev) mais antigos em que o Cade celebrou TCCs em investigações
dessa natureza
7
. Já a terceira, discutirá dois TCCs recentes (Gympass e iFood) que endereçaram a
exclusividade em plataformas digitais, e abordará os compromissos acordados e as inovações
trazidas em relação a precedentes mais antigos.
2. EXCLUSIVIDADE EM GERAL E EM PLATAFORMAS DIGITAIS
A Resolução nº 20/1999 do Cade (BRASIL, 1999)
8
define, em seu Anexo I, acordos de exclusividade
como aqueles em que “os compradores de determinado bem ou serviço se comprometem a adquiri-lo
com exclusividade de determinado vendedor (ou vice-versa), ficando assim proibidos de comercializar
os bens dos rivais”. Ao adotar cláusulas ou acordos de exclusividade de vendas, uma das partes de
uma relação contratual de negócios (vendedor ou comprador) impõe, portanto, condições à liberdade
do outro para: escolher o que compra ou vende; com quem faz negócios ou; onde opera.
A adoção de exclusividade é comum em relações comerciais e, usualmente, só é considerada
6 Em 20.03.2013, o Cade homologou TCC com o Sistema Unimed, obrigando que as Unimeds compromissárias retirassem
de seus estatutos cláusulas que impunham a exclusividade do médico cooperado e vedando a adoção de quaisquer práticas
que pudessem ter esse efeito. Vide, por exemplo, Processo Administrativo (PA) nº 08012.008737/2007-28 (Representada: Unimed
Londrina). Em 2000, no âmbito do PA n° 08012.003303/1998-25, o Cade celebrou TCC com a Souza Cruz proibindo a imposição
de exclusividade de venda de produtos a varejistas, exceto com estabelecimentos noturnos. Outros precedentes do Cade
trataram da prática da exclusividade, porém não culminaram na assinatura de TCC: PA nº 08012.005009/2010-60 (Representada:
PST Eletrônica), com decisão de condenação da Representada, trânsito em julgado em 22.09.2020; PA nº 08012.007423/2006-27
(Representadas: Unilever e Nestlé), com decisão de condenação da Unilever e de arquivamento em relação à Nestlé, trânsito
em julgado em 12.02.2019; PA nº 08012.003805/2004-10 (Representada: Ambev), com decisão de condenação da Representada
em 22.07.2009; PA nº 08012.003212/98-71 (Representada: Unimed Vales do Taquari e Rio Pardo), com decisão de condenação da
Representada em 14.03.2001.
7 Mais recentemente, em 23.10.2023, o Cade celebrou, no âmbito do Inquérito Administrativo nº 08700.001992/2022-21,
novo TCC com a Ambev, em que limitou a adoção de contratos de exclusividade com PDVs, estabelecendo diferentes caps a
depender da localidade. Pelo fato de sua celebração ter sido posterior à homologação dos TCCs de Gympass e iFood, optou-se
por deixa-lo de fora dos cases analisados para fins de observação das soluções negociadas do Cade em âmbito de processos
envolvendo acordos de exclusividade.
8 A Resolução nº 20/1999 foi revogada parcialmente pela Resolução nº 45/2007, mas seu Anexo I continua vigente.
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SOUZA, Danielle Kineipp de; CRAVEIRO, Priscilla. Novos desafios, novos remédios: as obrigações
negociadas pelo Cade nos TCCs celebrados com Gympass e iFood em investigações envolvendo
acordos de exclusividade. Revista de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 12, n. 1, p. 228-246,
2024.
https://doi.org/10.52896/rdc.v12i1.1080
ilegal quando prejudica substancialmente a concorrência. Noutras palavras, a exclusividade não é
considerada um ilícito per se ou presumivelmente ilegal, sendo, assim, sujeita à regra da razão.
Ao realizar essa análise de regra da razão, a autoridade antitruste considera se o acordo
de exclusividade em questão possui quaisquer benefícios pró-competitivos que superem seus
efeitos restritivos à concorrência. Além disso, avalia se esses efeitos pró-competitivos poderiam ser
alcançados por meio de um arranjo menos restritivo.
No campo dos efeitos pró-competitivos, a literatura econômica cita a redução de custos de
transação; maior segurança para realizar investimentos em inovação e publicidade sem o risco de
efeito carona; aumento da qualidade do produto/serviço, tendo em vista o alinhamento de incentivo
reputacional entre as partes envolvidas no acordo; dentre outros.
Por outro lado, no campo dos efeitos restritivos à concorrência, os acordos de exclusividade
podem ser capazes de (i) provocar fechamento de mercado, (ii) aumentar barreiras à entrada, (iii)
elevar os custos dos rivais ao restringir sua atuação naquele mercado ou relegá-los a fornecedores,
distribuidores ou revendedores mais caros ou menos eficientes e (iv) facilitar a coordenação de
cartéis. Essas estratégias de negócios podem levantar preocupações concorrenciais, dado que seu
efeito prático pode ser anticompetitivo, e podem não ter uma justificativa de negócios objetiva além
da exclusão de concorrentes.
Kharmandayan e Morais (2018) elencam alguns métodos para apuração do fechamento
de mercado decorrente de acordo de exclusividade. O primeiro deles seria o cálculo do índice de
fechamento de mercado, que envolve a ponderação do volume de vendas atingido pelo acordo em
relação ao total de vendas ou do número de agentes econômicos atingidos pelo acordo em relação
ao total de agentes existentes no mercado em análise. Outras ferramentas para apurar o grau de
fechamento de mercado seriam (i) a análise dos prazos dos compromissos de exclusividade, (ii)
a previsão de multas contratuais por rescisão, (iii) o nível de enforcement dos compromissos de
exclusividade, (iv) a variação da participação de mercado dos agentes beneficiados pela exclusividade
em comparação com os demais players do mercado; e (v) as próprias características do mercado, como
rivalidade, barreiras à entrada, existência de canais de distribuição alternativos, grau de maturidade
do mercado, etc.
Para Gaban, Domingues e Silva (2019), demonstrar os efeitos de uma prática – seja ela
coordenada ou unilateral – nunca foi fácil, porquanto requer técnica e conhecimento dos mercados,
cada qual com suas peculiaridades, de modo que qualquer generalização é indesejável. Em mercados
de inovação, o desafio é ainda maior, posto que o ferramental historicamente utilizado no antitruste
pode não ser suficiente.
Nesse sentido, a análise de arranjos de exclusividade se torna mais complexa no caso das
plataformas digitais. Quando se pensa em plataformas de dois lados, os agentes podem aderir a uma
única plataforma (ou seja, fazem singlehoming) ou a mais de uma plataforma concorrente (ou seja,
fazem multihoming). Quando há adoção de instrumentos de exclusividade, considera-se que seu uso
impede que os agentes façam multihoming (ARMSTRONG; WRIGHT, 2007).
Segundo OCDE (2020), dado que podem ser usados para impedir que os concorrentes
obtenham uma base de usuários suficiente para gerar efeitos de rede, os acordos de exclusividade
podem ter o condão de aumentar os custos dos concorrentes e reduzir a contestabilidade do
233
mercado
9
. Adicionalmente, ao impedir que os consumidores façam multi-homing, as estratégias
de exclusividade podem exagerar a tendência dos mercados a "inclinarem-se" para um monopólio.
Assim, há que se ter cautela especial quanto ao efeito dessa conduta em mercados digitais e avaliar
se existe uma justificativa econômica para a conduta além da exclusão de concorrentes.
Shapiro (1999) já alertava para o fato de que a associação entre arranjos de exclusividade e
efeitos de rede pode levar a substanciais barreiras à entrada. Suas conclusões vão além e apontam
no sentido de que tal associação pode inibir o surgimento de tecnologias superiores ou, ao menos,
propiciar que a firma incumbente possa, por meio do uso de arranjos de exclusividade, atrasar ou
frustrar o surgimento de novas tecnologias que possam contestar sua dominância. Como exemplo,
o autor cita o caso da Nintendo, em que houve a associação dos efeitos de rede (os jogadores
valorizavam as trocas de experiências com os jogos entre seus amigos) com práticas de exclusividade
(os desenvolvedores de jogos para o sistema da Nintendo tinham que ofertar com exclusividade para
a marca nos dois primeiros anos após o lançamento do jogo; e o sistema da Nintendo tinha travas
para evitar que jogos não autorizados rodassem em seu sistema). Segundo o autor, a dominância da
Nintendo no mercado de jogos de videogame apenas diminuiu depois que a empresa abandonou
essas práticas após enfrentar um processo antitruste.
A exclusividade pode aparecer na forma de cláusulas contratuais explícitas ou na forma
de arranjos de pros, condições contratuais secundárias ou políticas de desconto com base em
volume total ou share transacionado que possam induzir a uma “exclusividade de fato”
10
. Segundo
Rochet e Tirole (2003), de maneira mais geral, a prática de multi-homing de um lado da plataforma
intensifica a competição de preços do outro lado, à medida que as plataformas utilizam preços
baixos na tentativa de "guiar" os usuários finais desse último lado em direção a um relacionamento
exclusivo. No caso, por exemplo, de uma plataforma online de venda de imóveis que cobra taxas por
transação, caso os consumidores tenham o hábito de procurar por opções de compra em mais de
um canal, os vendedores de imóveis tenderiam a listar as ofertas apenas na plataforma mais barata.
Esse comportamento levaria as plataformas a adotarem uma postura mais agressiva nos preços para
atrair mais anúncios, que por sua vez atraem mais compradores e essa dinâmica se retroalimenta,
intensificando os efeitos de rede.
Para compreender os efeitos de uma conduta anticompetitiva em mercados de plataformas
de dois lados, é necessário avaliar como os efeitos no excedente se desdobram para os três
seguintes grupos: plataformas, vendedores (que anunciam seus produtos/serviços na plataforma) e
compradores. Segundo Belleflamme e Peitz (2019), há alguns insights interessantes, dentre os quais,
dois serão destacados: (i) o resultado de mercado pode ter a característica de que os três grupos
estejam todos em melhor situação quando os vendedores são autorizados a fazer multihoming; e
(ii) sempre que as plataformas se beneficiam ao impor exclusividade, fazê-lo pode beneficiar ou
prejudicar o lado que inicialmente faz multihoming, mas definitivamente prejudica o lado que faz
singlehoming, ou seja, pode ocorrer que o lado sujeito a uma restrição contratual se beneficia dessa
restrição, mas o outro lado é prejudicado. Como resultado, em um ambiente com a possibilidade de
9 Jullien e Sand-Zantman (2021) apresentam um apanhado teórico sobre exclusividade em plataformas nas páginas
12 e 13. Alertam, inclusive, para a possibilidade de um tratamento assimétrico da exclusividade, uma vez que, segundo os
autores, a oferta de exclusividade pode facilitar que empresas entrantes superem questões de coordenação decorrentes de
externalidades de rede.
10 Para maior detalhamento sobre a criação de barreiras ao multi-homing, ver Katz (2017).
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SOUZA, Danielle Kineipp de; CRAVEIRO, Priscilla. Novos desafios, novos remédios: as obrigações
negociadas pelo Cade nos TCCs celebrados com Gympass e iFood em investigações envolvendo
acordos de exclusividade. Revista de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 12, n. 1, p. 228-246,
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vendedores fazerem multihoming, uma agência antitruste deve proibir o uso de exclusividade do
lado do vendedor se seu objetivo for maximizar o excedente do comprador.
Doganoglu e Wright (2010) apresentam modelo aplicado a mercados de dois lados, nos quais
as plataformas buscam atrair compradores e vendedores. O modelo permite que as plataformas
façam ofertas diferentes para compradores e vendedores, resultando em uma forma natural de
discriminação de preços e foca no caso em que apenas os vendedores podem receber ofertas
exclusivas. Quando ofertas exclusivas não são oferecidas, a plataforma incumbente perde para
entrante que tenha rede superior. Portanto, a incumbente oferece acordos exclusivos na primeira
fase, inscrevendo vendedores exclusivamente para evitar o multihoming e extrai todos os benefícios
da rede dos compradores. A entrante mais eficiente é excluída e o bem-estar é menor
11
. No entanto,
ao contrário do caso de um único lado, os vendedores podem acabar em situação melhor como
resultado dos acordos exclusivos. Isso decorre da capacidade da incumbente de executar estratégia
de "dividir e conquistar"
12
na fase de competição.
Outras situações descritas na literatura envolvendo a utilização de modelos também trazem
reflexões interessantes. Teh et al. (2023) descreve estudos que começam com uma configuração de
singlehoming em ambos os lados e mostram que o multihoming de um lado leva a um estrangulamento
competitivo, em que as plataformas não precisam mais competir pelo lado de multihoming devido
ao poder de monopólio sobre o fornecimento de acesso exclusivo a cada usuário (singlehoming) do
outro lado. Assim, o multihoming do lado do comprador deslocaria a estrutura de taxas a favor dos
vendedores, eliminando a competição no lado do comprador.
Em suma, a literatura sugere cautela, por parte da autoridade antitruste, ao permitir
exclusividade em plataformas, especialmente devido aos prejuízos ao bem-estar do consumidor,
aumento de barreiras à entrada, elevação de custos dos rivais, potenciais prejuízos à inovação, ainda
que os vendedores (especialmente os incumbentes) possam, em alguma medida, se beneficiar dessa
prática.
3. PRECEDENTES DO CADE COM ASSINATURA DE TCCs
Conforme já descrito, a análise antitruste tem avaliado arranjos de exclusividade sob a
luz da regra da razão. O Cade vem estabelecendo alguns parâmetros para analisar os benefícios e
os malefícios à concorrência decorrentes da adoção de exclusividade, tais como: (i) existência de
posição dominante dos players e percentual de fechamento de mercado; e mais recentemente (ii)
duração e condições de renovação das cláusulas de exclusividade.
A seguir, serão apresentados dois precedentes não tão recentes de celebração de TCCs
em investigações envolvendo exclusividade, com foco nas especificidades dos remédios antitruste
adotados e na análise dos parâmetros elencados acima.
11 Corroborando a ideia de que o uso de exclusividade do lado do vendedor deve ser evitado se o objetivo for maximizar
o excedente do comprador.
12 Tal estratégia é descrita por Jullien (2001) como uma situação em que a discriminação de preços cria um ambiente
particular ao permitir estratégias agressivas que subsidiam alguns consumidores a participarem da plataforma e aproveitarem
as externalidades de rede para recuperar tal subsídio por meio de outros consumidores (ou do outro lado da plataforma).
235
a. Souza Cruz
Em julho de 2012, o Cade homologou a proposta de TCC apresentada pela Souza Cruz (fabricante
de cigarros). A empresa comprometeu-se a se abster de firmar todo e qualquer instrumento ou arranjo
contratual que tenha por objeto a prática de exclusividade de merchandising, exposição ou venda do
produto no ponto de venda (PDV).
A Souza Cruz, assim como sua concorrente Philip Morris
13
, figurava no polo passivo do
Processo Administrativo (PA) n° 08012.003921/2005-10
14
, tendo a Secretaria de Direito Econômico
– Ministério da Justiça (SDE) sugerido a condenação das Representadas. A investigação analisou
possível infração à ordem econômica decorrente da celebração, por parte das Representadas, de
acordos de exclusividade de merchandising e de exposição de produtos junto aos PDVs.
O referido processo teve início a partir do monitoramento de outro TCC celebrado pela Souza
Cruz anteriormente, daquela vez no âmbito do PA n° 08012.003303/1998-25. Tal processo, que tinha
a Philip Morris por representante, investigou possível infração à ordem econômica em decorrência
da celebração de contratos de exclusividade junto aos pontos de venda. Em tal processo, o Cade
celebrou TCC com a Souza Cruz no qual esta se obrigava a eliminar as cláusulas de exclusividade
de vendas de todos os seus contratos com varejistas e atacadistas, exceto aqueles firmados com
estabelecimentos noturnos.
Em momento de avaliação do cumprimento das obrigações do Termo, passou-se a questionar
se a Souza Cruz teria descumprido uma das cláusulas do TCC, ao firmar contratos com redes varejistas
que lhe garantiam exclusividade na exposição de seus produtos. Desse questionamento, seguiram-se
investigações desenvolvidas na SDE, que resultaram na instauração de PA cujo objetivo era apurar
ocorrência de infração à ordem econômica, consistente na celebração de acordos de exclusividade de
merchandising e de exposição, diferentemente do processo anterior, que se referia a exclusividade
de venda.
Segundo a análise empreendida, o mercado de produção e comercialização de cigarros teria as
seguintes características: (i) limitação de competição por meio de disputa de preços; (ii) necessidade
de ampla rede de distribuição; e (iii) necessidade de elevados investimentos em publicidade. A
existência de fortes restrições legais à publicidade de cigarros na televisão e em outros meios de
comunicação de massa, por meio de arcabouço normativo, tornou ainda mais estratégico para a
geração de valor em sua atividade o acesso dos fabricantes aos pontos de venda. Por essas razões,
a SDE entendeu que as cláusulas de exclusividade de merchandising e de exposição de produtos
poderiam ter o condão de provocar o fechamento de mercado, a elevação das barreiras à entrada e
a redução da concorrência inter-marca.
A SDE considerou que a Souza Cruz teria poder de mercado, tendo em vista (i) seu market
share elevado no ano anterior à instauração do processo - e (ii) o altíssimo grau de fidelidade do
consumidor em relação a seu portfólio de marca. Com base em índices apresentados pela Souza Cruz
e pela Philip Morris, sobretudo para as regiões de São Paulo e do Rio de Janeiro, a SDE concluiu pela
existência de elevado grau de fechamento de mercado.
13 A Philip Morris também celebrou TCC nos mesmos termos.
14 Nota editorial: todos os processos do Cade mencionados neste artigo podem ser consultados em: https://tinyurl.
com/y7obr4z5.
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SOUZA, Danielle Kineipp de; CRAVEIRO, Priscilla. Novos desafios, novos remédios: as obrigações
negociadas pelo Cade nos TCCs celebrados com Gympass e iFood em investigações envolvendo
acordos de exclusividade. Revista de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 12, n. 1, p. 228-246,
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https://doi.org/10.52896/rdc.v12i1.1080
A análise empreendida não focou nos detalhes de duração e condições de renovação das
cláusulas de exclusividade, mas teve como resultado a proibição completa da implementação da
exclusividade de merchandising e de exposição de produtos.
b. Ambev
15
O PA nº 08012.002608/2007-26 teve início em dezembro de 2008 após uma denúncia feita pela
Kaiser contra a Ambev. A denúncia alegava que a Ambev estaria praticando ações anticoncorrenciais
no mercado de cerveja com o objetivo de dificultar o acesso de concorrentes aos PDVs, elevando
artificialmente as barreiras já existentes no setor. Entre as ações atribuídas à Ambev, destacavam-se:
(i) obstáculos ao ingresso da cerveja Sol Pielsen no mercado, e (ii) imposição de termos comerciais
aos PDVs.
No que diz respeito a essas duas alegações, foi instaurado PA em desfavor da Ambev
para apurar “ocorrência de infração à ordem econômica, consistente na celebração de acordos de
exclusividade de vendas e na política de refrigeração adotada”
16
.
Segundo a SDE, dados do Ibope apresentados no processo indicavam um aumento nos
contratos de exclusividade de vendas assinados pela Ambev nos dois anos anteriores à instauração
do processo. Esses contratos eram predominantemente observados nos canais de bares e comércios
tradicionais, como mercearias e padarias, e havia indícios de que a Ambev estava escolhendo PDVs
estratégicos, mais lucrativos em termos de volume e visibilidade de marca, indicando a existência
de pontos de venda premium. Isso poderia agravar ainda mais as restrições enfrentadas por outros
concorrentes, ampliando o prejuízo relacionado a fechamento de mercado, considerando-se o poder
de mercado da Ambev, com mais de 60% de share.
No que tange à política de refrigeração, foi observado que, ao fornecer refrigeradores para
PDVs específicos, a Ambev estabelecia três condições: (i) um mínimo de vendas mensais, variável
conforme o PDV; (ii) refrigeração por marca, ou seja, cada marca da Ambev precisava ter seu próprio
refrigerador; e (iii) proibição de armazenar cervejas concorrentes nos refrigeradores.
A exigência de um mínimo de vendas não linear poderia gerar um fechamento de mercado
aos concorrentes. Além disso, vincular o fornecimento de refrigeradores à venda de quantidades
próximas à capacidade máxima do PDV poderia efetivamente garantir exclusividade à Ambev.
Adicionalmente, a pressão para atingir esse mínimo poderia forçar os comerciantes a parar de vender
a marca concorrente. Logo, considerou-se razoável presumir que uma política de distribuição de
refrigeradores baseada em mínimos de vendas não lineares e excessivamente altos poderia ter um
resultado exclusionário.
15 Recentemente, em 11.10.2023, o Cade homologou novo TCC com a Ambev, no âmbito do IA nº 08700.001992/2022-21,
em que estabeleceu caps para a celebração de acordos de exclusividade pela Compromissária em relação ao quantitativo
de pontos de venda e ao volume comercializado. Diferentes limites foram estabelecidos, considerando-se (i) as unidades
da federação; (ii) as capitais e municípios com mais de um milhão de habitantes; e (iii) os municípios de São Paulo, Rio de
Janeiro e Brasília. É possível notar alguns avanços importantes em relação ao TCC celebrado em 2015 com a mesma empresa:
o estabelecimento de duração máxima de 5 (cinco) anos para os contratos firmados, com proibição de renovação automática,
além da previsão de que os contratos firmados isentem os PDVs de qualquer sanção pecuniária por rescisão antecipada e da
vedação à imposição de cláusula de preferência em favor da Compromissária sobre PDVs futuros.
16 Despacho nº 913/2008. Processo Administrativo nº 08012.002608/2007-26, folha 710.
237
Considerando limitações de espaço físico e custos de energia elétrica, a exigência de um
refrigerador separado para cada marca sugeria fortemente uma possível infração à ordem econômica,
já que limitaria o acesso de concorrentes da Ambev aos PDVs.
Em junho de 2015, a Ambev celebrou TCC no âmbito desse processo. Diferentemente do já
mencionado TCC da Souza Cruz, nesse caso, o objeto do TCC não se referia à abstenção total da
utilização de instrumentos de exclusividade, mas estabelecia parâmetros para regular a celebração
de contratos de exclusividade pela Ambev com PDVs do canal frio
17
.
Foram definidos caps para exclusividade em relação a (i) quantidade de PDVs (no máximo
8% por região) e (ii) volume de vendas de cerveja (no máximo 10% por região) do canal frio que
tenham contrato de exclusividade ou que não tenham capacidade para refrigerar bebidas além do
refrigerador Ambev
18
. A análise não focou nos detalhes de duração e condições de renovação das
cláusulas de exclusividade, mas já teve avanços em relação à proibição completa da implementação
da exclusividade adotada no caso apresentado anteriormente.
Constatou-se que a solução prevista no TCC impedia que a utilização de instrumentos de
exclusividade fosse feita de forma desmedida, mas permitia a geração de eficiências que podem estar
relacionadas a esse tipo de prática. A adoção de exclusividade pode reduzir o risco de efeito carona,
incentivando a Ambev a realizar investimentos em determinado ponto de venda. Dessa maneira, o
PDV poderia usufruir de melhorias em seu estabelecimento, assim como de eventuais descontos, o
que poderia se reverter em benefícios aos consumidores.
Verifica-se que, comparativamente ao caso da Souza Cruz, em que o Cade adotou postura
mais conservadora, decidindo pela proibição total das cláusulas de exclusividade que eram objeto
do processo, o caso da Ambev já apresentou evolução, havendo uma limitação sem, contudo, impedir
completamente os acordos de exclusividade, indicando que o Cade reconheceu eventuais eficiências
decorrentes de sua adoção.
A seguir, serão apresentados os TCCs mais recentes e serão discutidas as principais inovações
trazidas nos novos compromissos antitruste estabelecidos.
4. OS TCCs MAIS RECENTES E OS COMPROMISSOS ANTITRUSTE ACORDADOS
Recentemente, o Cade celebrou, com as plataformas digitais Gympass e iFood, acordos
voltados a limitar a adoção de compromissos de exclusividade e suspender os efeitos negativos destes
em seus mercados. Embora envolvessem players de mercados distintos – Gympass em plataformas
agregadoras de academias, e iFood em marketplaces de delivery online de comida -, as investigações
guardam semelhanças importantes, exploradas a seguir.
Os mercados de atuação de Gympass e iFood são caracterizados por efeitos de rede (uma
maior quantidade e qualidade de players de um lado da plataforma atrai mais usuários para o outro
lado, e vice-versa), que podem se configurar importante barreira à entrada. Se do lado dos prestadores
de serviço (academias e restaurantes) há uma tendência natural ao multihoming – obstada em maior
17 Canal frio significa o canal de comercialização em que as cervejas são vendidas predominantemente geladas para
consumo no local, compreendendo os canais de consumo denominados bar e tradicional.
18 TCC Ambev. Requerimento de TCC nº 08700.004578/2015-44.
238
SOUZA, Danielle Kineipp de; CRAVEIRO, Priscilla. Novos desafios, novos remédios: as obrigações
negociadas pelo Cade nos TCCs celebrados com Gympass e iFood em investigações envolvendo
acordos de exclusividade. Revista de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 12, n. 1, p. 228-246,
2024.
https://doi.org/10.52896/rdc.v12i1.1080
ou menor grau pela exclusividade, nos casos em análise –, do lado dos usuários finais (empresas que
buscam ofertar opções de academias a seus funcionários e consumidores de refeições) parece haver
uma inclinação ao singlehoming
19
.
Há também nesses mercados uma dinamicidade muito grande, de modo que inovações são
trazidas aos serviços ofertados com grande frequência. A elevada capacidade de coleta, armazenamento
e processamento de dados subsidia o direcionamento de produtos e serviços para usuários nos
distintos lados da plataforma (FERNANDES, 2022), o que acaba por prover vantagem competitiva aos
que dominam o mercado, especialmente empresas incumbentes, num efeito denominado feedback
loop (OCDE, 2021, p. 15). Dadas as suas especificidades, competição por ecossistemas e uma tendência
à monopolização (tipping) também podem ser observados (BRASIL, 2020a).
Outras semelhanças podem ser apontadas. As duas plataformas foram first-movers, o que
lhes deu a oportunidade de conformar portfólios de parceiros consideravelmente maiores e, por
vezes, mais interessantes do que os de seus concorrentes. Essa vantagem do pioneiro, associada a
uma série de aquisições de concorrentes e/ou empresas com atuação em negócios complementares,
possibilitou a dominância de seus respectivos mercados. Estimou-se, durante as investigações, que
tanto o iFood quanto a Gympass detinham mais de 80% de market share
20
.
Ademais, ambas empresas adotaram, de maneira ampla, a política de exclusividade, com
a justificativa de que seria necessária para viabilizar investimentos contínuos nos parceiros. De
acordo com a instrução processual, a Gympass exigia exclusividade de todas as academias parceiras,
independentemente de investimentos, em contratos com prazos de duração indeterminados
21
. O
iFood, por sua vez, teria exclusividade absoluta com 41% e forte dominância em 18,8% das redes
com 15 ou mais restaurantes no Brasil
22
, considerados os parceiros mais relevantes em termos de
faturamento e atração de usuários. Seus contratos tinham prazo determinado, possibilidade de
renovação e previsão de multa por rescisão
23
.
Forgioni (2016) alude ao caso Michelin I, em que a Comissão Europeia entendeu que agentes
em posição de domínio em seus respectivos mercados possuem responsabilidades especiais e estão
sujeitos a maior escrutínio da autoridade da concorrência. Isso porque (i) a concorrência nesses
mercados já se encontra reduzida pela própria existência de empresas com posição dominante
e (ii) as ações de players dominantes têm maior potencial lesivo ao mercado do que aquelas
empreendidas por empresas menores. Em mercados digitais, isso se mostra ainda mais relevante:
players dominantes - como iFood e Gympass - podem alavancar-se em suas externalidades de rede
e distorcer a competição por meio de práticas que restringem o acesso de concorrentes e reduzem
transações econômicas, como os acordos de exclusividade.
Nesse espírito, antes de negociar os TCCs, o Cade adotou medidas preventivas em ambas
19 No caso do iFood, por exemplo, Nota Técnica da Tendências Consultoria Integrada, de 22/08/2022, acostada aos
autos pelo Rappi, revelou que 48% dos entrevistados costumam usar só um aplicativo de delivery e 93% utilizam mais o iFood
(Nota Técnica da Tendências Consultoria Integrada. Inquérito Administrativo nº 08700.004588/2020-47, p. 3).
20 Nota Técnica nº 14/2021/GAB-SG/SG/CADE. Inquérito Administrativo nº 08700.004136/2020-65.
21 Nota Técnica nº 39/2022/CGAA1/SGA1/SG/CADE. Requerimento de TCC nº 08700.006611/2021-19.
22 Ver manifestação do Rappi, de 17/11/2022, IA nº 08700.004588/2020-47 (p. 3), em que apresenta achados de estudo
conduzido no mercado de redes de food service.
23 Ver voto vogal do Cons. Victor Oliveira Fernandes, em que afirma que “um importante indício do efeito lesivo dos
acordos de exclusividade do iFood verificado ao longo do IA é o seu significativo grau de cobertura” (Requerimento de TCC nº
08700.005597/2022-17, §39).
239
as investigações, intervindo no mercado para limitar a prática de exclusividade, considerada
potencialmente prejudicial à concorrência. Para avaliar se estavam presentes os pré-requisitos
para sua imposição, foram levados em conta a abrangência dos acordos, sua duração, as condições
de renovação e rescisão e os impactos nos mercados. No caso específico dos mercados digitais, a
literatura sugere que a adoção de medidas preventivas se justifica pelo fato de que sua natureza de
rápida mudança pede respostas rápidas, sob risco de o enforcement antitruste se tornar inefetivo,
ocasionando sub-punição, tipping e outras distorções (AZAMBUJA, 2022).
O Cade, ao estabelecer as obrigações das empresas em seus TCCs, não proibiu totalmente as
exclusividades, como ocorreu no caso da Souza Cruz, reconhecendo suas potenciais eficiências. No
entanto, considerou que cláusulas de cap, isoladamente, como no TCC da Ambev, não seriam suficientes
para lidar com os efeitos negativos das exclusividades nos mercados digitais. Essas cláusulas limitam
a exclusividade e evitam o fechamento do mercado a concorrentes, mas não abordam o impacto
negativo na diminuição das transações para os parceiros exclusivos, como restaurantes e academias.
Para esses parceiros, abrir mão de negociar em outras plataformas vai contra a tendência natural de
multihoming e resulta em ineficiências alocativas, reduzindo as vendas.
Para compensar essas ineficiências, entendeu-se necessário que as contrapartidas à
exclusividade resultem em benefícios reais e significativos, que possam ser usufruídos tanto pelos
parceiros exclusivos quanto pelos consumidores finais, ou seja, pelos dois lados da plataforma,
gerando um resultado líquido positivo ao final. Desse modo, nos TCCs firmados com o iFood e o
Gympass, o Cade estabeleceu um novo tipo de remédio, o chamado compromisso de desempenho:
as Compromissárias obrigaram-se a garantir, por meio de investimentos, que os negócios dos
parceiros exclusivos cresçam acima das médias de crescimento dos mercados-alvo, de maneira
que se justifique a exclusividade. Essa cláusula endereça, ainda, o fato de que as contrapartidas à
exclusividade ofertadas, a depender de sua natureza, podem gerar eficiências por um tempo, mas
muito provavelmente não por tempo indefinido. Assim, buscou-se assegurar que a parceria exclusiva
só exista enquanto gere retorno acima da média ao parceiro exclusivo, sob pena de a Compromissária
ter que indenizá-lo.
Mas o que mudou em relação ao precedente em que foram adotados caps como remédio
antitruste? Por que foram necessários novos compromissos nos casos mais recentes? Além das
características peculiares dos mercados digitais (em especial as externalidades de rede), as
contrapartidas ofertadas aos parceiros exclusivos mereceram atenção. No caso da Ambev, as
contrapartidas eram bem definidas (cessão de equipamentos de refrigeração e sua manutenção)
e havia clareza de que seus benefícios aos PDVs se protraiam no tempo. Nos casos da Gympass e
do iFood, as contrapartidas, quando existentes, com raras exceções, eram pouco claras quanto ao
impacto nos parceiros em termos de geração de benefícios
24
. Sendo a capacidade de as contrapartidas
gerarem eficiências justamente o que pode pesar a balança a favor da adoção da exclusividade
em uma análise antitruste, sua avaliação ganhou protagonismo nesses dois casos, conforme será
detalhado a seguir.
24 No caso do iFood, a SG-Cade destacou que “grandes redes ou grandes marcas de restaurantes pouco ou nada têm a
se beneficiar das contrapartidas à exclusividade eventualmente oferecidas pelo iFood. Isso porque, além de já contarem com
o reconhecimento do público, já alcançaram tamanha maturidade e expertise de atuação que decisões sobre investimentos a
serem priorizados, bem como seu financiamento, são realizados de maneira independente” (Nota Técnica nº 3/2023/CGAA1/
SGA1/SG/CADE. Requerimento de TCC nº 08700.005597/2022-17, §59).
240
SOUZA, Danielle Kineipp de; CRAVEIRO, Priscilla. Novos desafios, novos remédios: as obrigações
negociadas pelo Cade nos TCCs celebrados com Gympass e iFood em investigações envolvendo
acordos de exclusividade. Revista de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 12, n. 1, p. 228-246,
2024.
https://doi.org/10.52896/rdc.v12i1.1080
a. Gympass
Em 2021, a SG-Cade instaurou Inquérito Administrativo (IA) nº 08700.004136/2020-65 contra a
Gympass, com base na representação das concorrentes Total Pass e Yoooup, para investigar suposto
abuso de posição dominante materializado pela adoção de cláusulas de exclusividade com academias
parceiras da Gympass e com alguns clientes corporativos; e cláusulas de paridade de preços com
academias.
Quando da instauração do IA, a SG-Cade adotou medida preventiva que proibia a Gympass
de celebrar novos contratos de exclusividade, tornando sem efeito eventuais cláusulas de paridade
de preços e de quarentena, bem como multas a elas relacionadas. Mantinha-se, entretanto, a
possibilidade de que a Gympass renovasse os contratos de exclusividade já firmados, por igual
período, devendo estes estar limitados a uma duração máxima de dois anos. A Total Pass, então,
interpôs recurso voluntário ao Tribunal do Cade para que a medida preventiva suspendesse as
obrigações de exclusividade então vigentes com academias e empregadores cadastrados, o que foi
deferido.
Antes da medida preventiva, Gympass impunha exclusividade a todas as academias parceiras,
sem necessariamente oferecer contrapartidas, de modo que a SG-Cade entendeu que não havia
justificativa econômica para a adoção de tal política de maneira generalizada. A esse respeito, aduziu
que
[...] tais parceiros, ao menos potencialmente, poderiam estar sendo alvo de captura
pelos acordos de exclusividade junto à Requerente com o intuito de tornar o portfólio
de academias dos outros aplicativos concorrentes menor e menos atrativo para
os potenciais clientes, prejudicando, assim, seu desenvolvimento no mercado em
referência.
25
Quando a exclusividade não está atrelada a investimentos, ela pode ser instrumento de
captura” de agentes econômicos (ARAÚJO, 2023), deixando de contribuir para o alcance da eficiência
econômica.
Foi diante desse cenário que se celebrou TCC em que a Gympass se obrigou não só a limitar a
exclusividade a 20% (vinte por cento) da base total de academias parceiras por município, mas também
a garantir que todo contrato de exclusividade firmado com academias tenha como contrapartida a
realização de investimentos.
26
Os investimentos devem assegurar à academia parceira “o pagamento
de um determinado valor de repasse mínimo durante a vigência do contrato, baseado em uma meta
de aumento do volume de frequentadores associados à plataforma nas academias parceiras”.
27
O
compromisso de desempenho foi considerado “novidade positiva, que impõe um ônus a mais para
a adoção de exclusividade.
28
25 Nota Técnica nº 39/2022/CGAA1/SGA1/SG/CADE. Requerimento de TCC nº 08700.006611/2021-19.
26 Requerimento de TCC nº 08700.006611/2021-19
27 “Ao menos duas vezes a média da taxa de crescimento anual do mercado brasileiro de academias verificada com base
nos cinco últimos relatórios da International Health, Racquet & Sportsclub Association (“IHRSA”)” (Nota Técnica nº 39/2022/
CGAA1/SGA1/SG/CADE. Requerimento de TCC nº 08700.006611/2021-19).
28 Voto Vogal - Conselheiro Luiz Augusto Azevedo de Almeida Homann. Requerimento de TCC nº 08700.006611/2021-19,
§ 13.
241
Percebe-se que, neste caso, o Cade optou por limitar, e não proibir, os acordos de exclusividade,
reconhecendo sua importância para o modelo de negócios da Gympass e para parceiros que de
alguma forma deles se beneficiavam. Entretanto, inovou ao atrelar a possibilidade de contratar a
exclusividade a um compromisso de desempenho, ou seja, para justificar a exclusividade, deve-se
garantir retorno econômico às academias parcerias exclusivas. Nesse sentido, considerou-se que o
TCC manteve o “espírito da medida preventiva e da jurisprudência do Cade, quanto à necessidade
de justificativa econômica para a adoção de cláusulas de exclusividade, com ganhos de eficiência
repassáveis ao consumidor”.
29
Além dos compromissos de cap e de eficiência, o TCC limitou a duração dos contratos
de exclusividade a dois anos, renováveis; proibiu a imposição de período de carência para que a
academia contrate com outra plataforma após o término da parceria com a Gympass; e vedou a
adoção de cláusulas de paridade de pros em relação a outras plataformas.
b. iFood
Em março de 2021, o Cade instaurou IA nº 08700.004588/2020-47 contra o iFood, a partir
das representações do concorrente Rappi e da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes
(Abrasel), para investigar se a plataforma abusava de sua posição dominante, fechando parcela
importante do mercado de restaurantes a concorrentes, por meio da adoção de compromissos de
exclusividade. Dentre os restaurantes fidelizados pelo iFood estavam marcas com grande apelo junto
aos consumidores, as quais as plataformas concorrentes consideravam imprescindíveis para atrair
usuários e, consequentemente, fazer frente à dominância do iFood.
Por ocasião da instauração do IA, o Cade adotou medida preventiva contra o iFood
30
, que
proibiu a celebração de novos contratos de exclusividade, mas permitiu que aqueles então em vigor
fossem renovados pelo prazo de um ano, sem limites de renovações. A negociação de TCC teve início
em julho de 2022, portanto, mais de um ano após a adoção da medida preventiva, e foi concluída em
fevereiro de 2023, com o envio ao Tribunal do Cade da sugestão de homologação do TCC pela SG-Cade.
O acordo foi estruturado em 3 eixos: o primeiro buscava endereçar as “dificuldades
extraordinárias que a celebração de compromissos de exclusividade pelo iFood - em especial com
aqueles restaurantes considerados chave ou estratégicos - vem gerando para ingresso e operação
de marketplaces no mercado
31
; o segundo, garantir que as contrapartidas ofertadas pelo iFood ao
parceiro exclusivo gerem de fato eficiências durante todo o período de parceria; e o terceiro, abordar
questões complementares que surgiram durante a instrução do IA
32
.
O primeiro conjunto de compromissos do TCC partiu do reconhecimento de que os acordos de
exclusividade, aliados às externalidades de rede da plataforma, serviriam para fortalecer a posição de
dominância do iFood. Assim, o Cade estabeleceu caps para a quantidade de restaurantes exclusivos
29 Voto Vogal - Conselheiro Luis Henrique Bertolino Braido. Requerimento de TCC nº 08700.006611/2021-19, § 11.
30 Nos termos do art. 84, caput e § 1° da Lei n° 12.529/2011 (BRASIL, 2011) e art. 212 do Regimento Interno do Cade
(BRASIL, 2020b).
31 Nota Técnica nº 3/2023/CGAA1/SGA1/SG/CADE. Requerimento de TCC nº 08700.005597/2022-17.
32 Requerimento de TCC nº 08700.005597/2022-17.
242
SOUZA, Danielle Kineipp de; CRAVEIRO, Priscilla. Novos desafios, novos remédios: as obrigações
negociadas pelo Cade nos TCCs celebrados com Gympass e iFood em investigações envolvendo
acordos de exclusividade. Revista de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 12, n. 1, p. 228-246,
2024.
https://doi.org/10.52896/rdc.v12i1.1080
(no máximo 8% do total de restaurantes ativos) nos municípios com mais de 500 mil habitantes e,
também, nacionalmente, para o volume de negócios transacionado pelos parceiros exclusivos (no
máximo 25% do total do GMV transacionado na plataforma).
Adicionalmente, o TCC proibiu terminantemente a adoção de compromissos de exclusividade
com marcas que possuam 30 ou mais restaurantes e determinou que os compromissos vigentes
com esse grupo específico deveriam se encerrar até 30 de setembro de 2023. De modo análogo à
investigação da Ambev, em que havia a percepção clara da existência de pontos de venda premium,
reconheceu-se, neste caso, o caráter estratégico das grandes marcas para o faturamento dos
marketplaces de delivery online de comida e para formação do portfólio e a consequente atração de
usuários. A SG-Cade ponderou:
[...] ao celebrar compromisso de exclusividade com restaurantes considerados
estratégicos ou “chave” para composição de portfólios de
marketplaces,
alavancando-se para isso em sua superior externalidade de rede, o iFood transformou
a dinâmica da concorrência no mercado de
marketplaces de competição por pedidos
em competição por celebração de exclusividade com principais restaurantes, o que
não tem se mostrado o arranjo mais eficiente de prestação deste serviço
33
.
Para o segundo conjunto de compromissos, a SG-Cade observou que (i) grande parte das
contrapartidas ofertadas pelo iFood tem eficiência marginal decrescente, ou seja, ao ganharem
expertise no delivery, os restaurantes passam a prescindir cada vez mais de investimentos do iFood,
razão pela qual não se justifica a possibilidade de renovações sequenciais ilimitadas da exclusividade;
e (ii) o compromisso de exclusividade, ao inviabilizar o multihoming, limita a quantidade de transações
efetivadas pelos restaurantes e isso deve ser compensado por investimentos do iFood, de modo a
gerar eficiências que superem os efeitos da restrição.
Diante disso, o Cade estabeleceu duas cláusulas inovadoras. A primeira foi a chamada
quarentena: após um máximo de dois anos de contrato de exclusividade, o restaurante deve ser
desobrigado do compromisso de exclusividade com o iFood pelo período de um ano. Segundo a SG-
Cade, tal compromisso visa a “liberar de tempos em tempos os restaurantes para contratarem com
outra(s) plataforma(s), abrindo espaço para outras parcerias no mercado
34
. A cláusula de quarentena
foi considerada “importante novidade [...] para dinamizar o setor”, na medida em que estimula
“a competição entre as plataformas rivais para a obtenção da exclusividade” com restaurantes
desobrigados do compromisso com o iFood e a obtenção de escala
35
.
A exceção a essa regra de quarentena constitui a segunda inovação. Trata-se da obrigação
que estabelece meta de desempenho para o parceiro exclusivo, a ser garantida pelo iFood: poderão
ser renovados (até um limite de 50% dos contratos de exclusividade) aqueles compromissos de
exclusividade que possuam como contrapartida investimentos na operação do restaurante exclusivo
que garantam um aumento da receita obtida por meio da Plataforma iFood que seja, no mínimo, 40%
superior ao crescimento do mercado de delivery de comida no ano anterior. O não atingimento da
meta gera consequências ao iFood: a obrigação de indenizar o restaurante exclusivo no valor do lucro
33 Nota Técnica nº 3/2023/CGAA1/SGA1/SG/CADE. Requerimento de TCC nº 08700.005597/2022-17, §55.
34 Nota Técnica nº 3/2023/CGAA1/SGA1/SG/CADE. Requerimento de TCC nº 08700.005597/2022-17, §68.
35 Voto Vogal – Conselheiro Victor Oliveira Fernandes. Requerimento de TCC nº 08700.005597/2022-17, §42.
243
correspondente aos pedidos não recebidos, considerando-se, para o cálculo, uma margem de lucro
de no mínimo 10%.
Um terceiro conjunto de compromissos diz respeito a preocupações que surgiram ao longo
da instrução, relacionadas à adoção de cláusulas de paridade de preço em contratos celebrados
pelo iFood com restaurantes; práticas comerciais que estariam sendo empregadas pelo iFood que
poderiam levar à exclusividade de fato; e à necessidade de fomentar o multihoming de restaurantes,
que muitas vezes, por dificuldades técnicas de gerenciar pedidos de múltiplas plataformas de delivery,
acabam por contratar somente a plataforma dominante.
Assim, o TCC proibiu a exigência de paridade de preços pelo iFood em relação a outras
plataformas e vedou medidas comerciais que possam levar à exclusividade de fato, tais como (i)
condicionar incentivos a restaurantes não exclusivos à meta de manter a maior parte do seu volume
de negócios na plataforma; (ii) restringir promoções comerciais do restaurante não exclusivo em
outras plataformas; (iii) conceder descontos personalizados por aumento de volume a restaurantes
não exclusivos. Por fim, estabeleceu compromisso de abertura de APIs (Application Programming
Interface) do iFood para desenvolvedores externos, para facilitar a integração da plataforma com
sotwares de gestão de pedidos utilizados pelos restaurantes e facilitar sua presença em diferentes
marketplaces de delivery de comida.
Em suma, verifica-se que em ambos os casos de TCCs mais recentes analisados nesta seção, a
atuação da autoridade antitruste foi além do estabelecimento de compromissos de limites máximos
para a adoção de arranjos de exclusividade. Houve uma análise mais pormenorizada em relação às
eficiências decorrentes da prática de exclusividade, especialmente no que concerne às contrapartidas
ofertadas aos parceiros (compromissos de desempenho) para que estes atuem em exclusividade com
plataformas das Requerentes.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Acordos de exclusividade são comuns em relações comerciais, sendo considerados ilegais
somente quando prejudicam substancialmente a concorrência. À luz da regra da razão, as autoridades
antitruste avaliam se os efeitos pró-competitivos do acordo superam seus efeitos restritivos e se os
mesmos resultados poderiam ser alcançados por outros meios menos gravosos.
O Cade tem estabelecido parâmetros para avaliar os efeitos positivos e negativos desse tipo
de acordo, como a posição dominante dos envolvidos e o percentual de fechamento de mercado, além
de recentemente considerar a duração e as condições de renovação das cláusulas de exclusividade.
A cautela é necessária, especialmente em mercados digitais, nos quais a exclusividade pode
aumentar os custos dos concorrentes e favorecer o surgimento de monopólios, sendo crucial avaliar
justificativas econômicas para tais práticas. Em plataformas digitais de dois lados, a exclusividade
pode impedir o multihoming dos usuários, afetando a competição, e resultar em ineficiências
alocativas nos mercados-alvo. A análise dessa prática deve considerar os efeitos sobre todos os
agentes: plataformas, vendedores e compradores.
O presente artigo buscou ilustrar como a análise de condutas relacionadas a acordos de
exclusividade pela autoridade antitruste evoluiu ao longo da última década e o impacto disso na
244
SOUZA, Danielle Kineipp de; CRAVEIRO, Priscilla. Novos desafios, novos remédios: as obrigações
negociadas pelo Cade nos TCCs celebrados com Gympass e iFood em investigações envolvendo
acordos de exclusividade. Revista de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 12, n. 1, p. 228-246,
2024.
https://doi.org/10.52896/rdc.v12i1.1080
negociação de obrigações em sede de TCCs. O TCC da Souza Cruz, precedente mais antigo dentre os
analisados, impôs uma vedação total à adoção de mecanismos de exclusividade. Já o TCC da Ambev,
celebrado alguns anos mais tarde, reconheceu a necessidade de preservar a geração de eficiências
relacionadas a essa prática e estabeleceu caps para sua utilização.
Os TCCs mais recentes da Gympass e do iFood trouxeram ainda mais inovações com relação
à proibição irrestrita à adoção de exclusividade. Além dos caps, implementaram compromissos de
desempenho, para garantir que as contrapartidas à exclusividade gerem, de fato, eficiências. Tais
compromissos estabelecem metas claras e objetivas de crescimento dos parceiros exclusivos como
resultado dos investimentos realizados pelas compromissárias.
Nota-se, portanto, que uma nova abordagem foi adotada, em virtude tanto dos novos desafios
colocados pelo mercado de plataformas digitais quanto da percepção da necessidade de calibrar a
intervenção nesses mercados. Nesse sentido, nos TCCs celebrados com iFood e Gympass, o Cade
tomou o cuidado de preservar eficiências ligadas à política de exclusividade das compromissárias e
de não gerar impactos negativos à capacidade de inovação desses agentes. Ao mesmo tempo, buscou
dissipar os riscos concorrenciais inerentes à adoção dessa prática, por meio do estabelecimento de
limites à sua abrangência e duração, bem como da imposição de compromissos de desempenho às
compromissárias.
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