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TEORIAS DO DANO EM
ECOSSISTEMAS DIGITAIS
1
Theories of harm in digital ecosystems
Bruno Polonio Renzetti
2
Instituto de Ensino e Pesquisa (INSPER) – São Paulo/SP, Brasil
RESUMO ESTRUTURADO
Objetivo: este artigo propõe quatro novas teorias do dano para abordar possíveis efeitos
anticompetitivos oriundos de atos de concentração conglomerados, principalmente no âmbito da
criação de ecossistemas digitais. Parte-se do diagnóstico de que as teorias do dano comumente
associadas a conglomerados não são capazes de identificar efeitos anticompetitivos relacionados a
estratégias de negócios na economia digital.
Método: revisão bibliográfica de literatura e estudo de casos.
Conclusões: a conclusão convida as autoridades de defesa da concorrência, especialmente a
brasileira, a reconhecerem a necessidade de superar noções tradicionais de efeitos conglomerados e
atuarem de forma menos tímida nesses casos.
Palavras-chave: fusões conglomeradas; Teorias do Dano; ecossistemas digitais; economia digital;
controle de estruturas.
STRUCTURED ABSTRACT
Objective: the paper proposes four new theories of harm to address possible anticompetitive eects
arising from conglomerate mergers, especially in the context of digital ecosystems. It starts with the
diagnosis that the theories of harm commonly associated with conglomerates are not capable of
identifying anticompetitive eects related to business strategies in the digital economy.
Method: literature review and case study.
Conclusions: the conclusion urges competition authorities, especially the Brazilian antitrust authority,
to acknowledge the need to overcome traditional notions of conglomerate eects and to act more
boldly in such cases.
1 Editor responsável: Prof. Dr. Victor Oliveira Fernandes, Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), Brasília,
DF, Brasil. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5250274768971874. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5431-4142.
Recebido em: 30/03/2024 Aceito em: 15/10/2024 Publicado em: 11/12/2024
2 Doutor em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo, Master of Laws (LL.M.) pela Yale Law School, Mestre
em Direito e Desenvolvimento pela FGV Direito SP e Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Professor da
graduação em direito do Insper, em São Paulo. Chefe de Assessoria no Tribunal do Cade.
E-mail: brunopr5@insper.edu.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0552342887882392
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8249-4451
4
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RENZETTI, Bruno Polonio. Teorias do dano em ecossistemas digitais. Revista de Defesa da
Concorrência, Brasília, v. 12, n. 2, p. 85-103, 2024.
https://doi.org/10.52896/rdc.v12i2.1088
Keywords: conglomerate mergers; Theories of Harm; digital ecosystems; digital economy; merger
control.
Classificação JEL: K21; L41; L44.
Sumário: 1. Contextualização do problema; 2. A formação de ecossistemas
digitais; 3. Propondo novas Teorias do Dano para ecossistemas digitais; 3.1
Economia de atenção; 3.2 Dark patterns; 3.3 Anexação de plataformas; 3.4
Redução de concorrência potencial ou nascente; 4. Conclusão; Referências.
1 CONTEXTUALIZAÇÃO DO PROBLEMA
“Teorias renovadas sobre ecossistemas digitais multiproduto e poder conglomeral dinâmico
na era digital ainda merecem ser discutidas de forma mais sistemática pelo Conselho” (Resende;
Fernandes; Barcelos, 2023, p. 4).
A frase acima foi retirada de recente documento de trabalho editado pelo Conselho
Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Em “Fusões Conglomerais: Teorias do Dano e Jurisprudência
do Cade entre 2012 e 2022”, a autoridade brasileira de defesa da concorrência identifica as principais
teorias do dano associadas a atos de concentração conglomerados na atividade de controle de
estruturas do Cade. O estudo conclui que a teoria da atuação transversal (reciprocity dealings) é a
mais comumente aplicada pelo Conselho para avaliar os riscos concorrenciais associados a efeitos
conglomerados. Todavia, considerando a intensa digitalização da economia, o Cade tem se mostrado
tímido em explorar teorias do dano que melhor enquadrem as novas estruturas e estratégias de
negócios, principalmente quando se trata de operações conglomerdas envolvendo ecossistemas
digitais. De acordo com o próprio documento do Cade, “as decisões do Cade em fusões conglomerais
estão amplamente alinhadas com o pensamento antitruste convencional, que apresenta preocupações
concorrenciais moderadas” (Resende; Fernandes; Barcelos, 2023, p. 18).
Importante mencionar que o “pensamento antitruste moderado” mencionado no documento
do Cade se estabeleceu como mainstream em uma época em que não existiam economia de dados,
alto nível de inovação, altos efeitos de rede e outras características de mercados digitais. Com isso
em mente, este artigo oferece teorias do dano capazes de preencher esta lacuna identificada no
estudo do Cade. São propostas quatro novas formas de análise das condutas de grandes agentes
econômicos da economia digital. Busca-se, com isso, trazer subsídios para a atuação da autoridade
antitruste brasileira, capacitando-a para melhor compreender as dinâmicas dos ecossistemas digitais.
2 A FORMAÇÃO DE ECOSSISTEMAS DIGITAIS
A ascensão da economia baseadas em plataformas digitais já é fenômeno bem estabelecido
na literatura e realidade econômica. Plataformas são ubíquas em nosso cotidiano e, atualmente,
há ampla literatura sobre plataformas digitais em suas mais diversas vertentes, abordando temas
desde suas implicações para a defesa da concorrência até seus efeitos na liberdade de expressão
dos cidadãos, passando pela influência em processos democráticos. Inúmeros trabalhos na literatura
87
nacional e internacional definem plataformas digitais e suas características distintivas, como o
caráter de dois ou múltiplos lados, efeitos de rede, uso intensivo de dados, entre outros
3
.
Todavia, o interesse e produção acadêmica sobre ecossistemas digitais ainda não está no
mesmo nível. Trata-se de assunto que somente nos últimos anos vem recebendo atenção devida
pelos estudiosos do direito concorrencial e pelas autoridades da concorrência. O fato de não existir
uma definição formal em legislações sobre o que exatamente seria um ecossistema digital não
significa que não há conhecimento sobre esta forma de organização empresarial e seus impactos
no enforcement concorrencial. Como exemplo, pode-se citar a recente revisão das Merger Guidelines
do Departamento de Justiça (DOJ) e da Federal Trade Commission (FTC) nos Estados Unidos, que
abordam expressamente a questão de ecossistemas quando tratam de “competição nascente”. No
Brasil, a Contribuição do Cade à tomada de subsídios para regulação de plataformas digitais do
Ministério da Fazenda aborda, em diversas passagens, a importância de se verificar os impactos dos
ecossistemas digitais ao funcionamento de mercados
4
.
Ainda que se possa questionar a utilidade da definição formal de mais uma figura jurídica,
é importante perceber que plataformas digitais e ecossistemas digitais são distintos e apresentam
desafios distintos também. Nesse sentido, Jacobides e Lianos (2021, p. 1021) esclarecem:
A maior parte da literatura sobre estratégia considera que ecossistemas são
frequentemente baseados em plataformas, que possibilitam as conexões entre os
atores do ecossistema e, possivelmente, os usuários finais. No entanto, plataformas e
ecossistemas não são a mesma coisa e não devem ser confundidos. Uma plataforma
pode ser definida como um novo modelo de negócios, uma nova tecnologia social,
uma nova formação infraestrutural ou todas essas coisas ao mesmo tempo. As
plataformas fornecem a base para a rede de interações que definem os ecossistemas;
se as plataformas dizem respeito às tecnologias, os ecossistemas dizem respeito às
relações interorganizacionais. Os ecossistemas, que frequentemente se baseiam em
plataformas, surgem não a partir de controle centralizado, mas das interações entre
os componentes de um sistema correlacionado. Ecossistemas referem-se a grupos
de múltiplos atores que colaboram como complementares (ou seja, alternativas
à “teoria da firma” em relação à integração vertical ou arranjos de cadeia de
suprimentos) e pacotes de múltiplos produtos oferecidos aos clientes (ou seja, bens
e serviços conectados horizontal ou diagonalmente que são “empacotados” juntos),
focados na conveniência do cliente – e em sua retenção
5
.
3 Por todos, cito o relatório elaborado pelo Stigler Center da Universidade de Chicago (Stigler Center, 2019).
4 “De fato, as plataformas digitais dominantes frequentemente atuam como orquestradores de vastos ecossistemas,
intermediando as relações entre diferentes grupos de usuários e agentes econômicos complementares. Nesses casos, o poder
econômico da plataforma decorre não apenas da sua participação em um mercado isoladamente considerado, mas sobretudo
da sua capacidade de controlar os termos de acesso aos mercados por ela intermediados e de influenciar a dinâmica
competitiva nos mercados adjacentes” (Cade, 2024, p. 34).
5 Tradução livre de: “Most strategy literature considers that ecosystems are oten based on platforms, which enable
the connections between ecosystem actors and possibly end users. Platforms and ecosystems are not the same, although, and
should not be conflated. A platform may be defined as a new business model, a new social technology, a new infrastructural
formation, or all three at once. Platforms provide the foundation for the web of interactions that define ecosystems; if platforms
are about technologies, ecosystems are about interorganizational relations. Ecosystems, which oten draw on platforms, arise
not from centralized control but from the interactions between the components of a correlated system. Ecosystems refer to
multiactor groups of collaborating complementors (i.e. “theory of the firm” alternatives to vertical integration or supply-chain
arrangements) and multiproduct bundles oered to customers (i.e. horizontally or diagonally connected goods and services
that are “packaged” together), focused on customer ease – and lock-in”.
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RENZETTI, Bruno Polonio. Teorias do dano em ecossistemas digitais. Revista de Defesa da
Concorrência, Brasília, v. 12, n. 2, p. 85-103, 2024.
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Ecossistemas digitais podem ser definidos como uma coleção de produtos e serviços que
são interoperáveis dentro de uma mesma plataforma, fornecidos de acordo com as regras técnicas e
contratuais da plataforma e que, de alguma forma, aumentem o valor da plataforma para os usuários,
seja nos vetores de preço, qualidade ou variedade. Ecossistemas se caracterizam por não competirem
em apenas uma indústria (ou mercado relevante). As plataformas partem de um ecossistema – bem
como seus complementos – participam da dinâmica competitiva de diversos mercados (cross market
competition). Pode-se dizer que a competição em ecossistemas ocorre em três diferentes níveis:
(a) competição entre plataforma; (b) competição entre plataformas e seus complementos; e (c)
competição entre os complementos das plataformas. Estes diferentes aspectos de competição estão
interligados entre si e, conjuntamente, determinam o sucesso ou fracasso de ecossistemas.
As características particulares da organização de ecossistemas digitais apresentam desafios
adicionais à noção clássica do antitruste. Por exemplo, conceitos importantes como mercado
relevante e poder de mercado tomam novos contornos quando se referem a ecossistemas digitais.
Torna-se cada vez mais importante compreender o locus da competição como o de competição entre
diferentes sistemas, e não apenas entre agentes econômicos específicos dentro de um mercado
relevante rigidamente definido (Zingales; Stylianou, 2022, p. 47). Além disso, a análise de poder de
mercado não mais deve se pautar somente pela possibilidade de aumento de preços, mas também da
possibilidade de condutas como o abuso da exploração de dados (Jacobides; Lianos, 2021, p. 1207)
6
.
O atual cenário econômico, com a prevalência das plataformas e ecossistemas digitais,
deu novo ar à discussão acerca dos atos de concentrações conglomerados. Anne C. Witt (2022, p.
181) investigou os motivos pelos quais atos de concentração conglomerados voltaram à pauta das
autoridades de defesa. De acordo com a autora, haveria ao menos três motivos para tanto: (i) a
criação de mega-plataforma digital; (ii) o advento dos ecossistemas digitais; e (iii) as aquisições em
série pelas Big Tech. Sobre o segundo motivo, Witt explica:
O segundo fator é o surgimento dos ecossistemas digitais. As Big Five já não são mais
empresas de um único produto. Elas são conglomerados tecnológicos multinacionais que
criaram ecossistemas sofisticados de produtos e serviços interconectados. O Google, por
exemplo, há muito deixou de ser apenas um provedor de um sistema de busca digital.
Desde sua fundação em 1998, cresceu para oferecer serviços voltados para trabalho
e produtividade, e-mail, agendamento e gerenciamento de tempo, armazenamento
em nuvem, mensagens instantâneas e videochamadas, tradução, mapeamento e
navegação, compartilhamento de vídeos, anotações, organização e edição de fotos,
um sistema operacional móvel, um navegador, smartphones, alto-falantes inteligentes,
roteadores e headsets de realidade virtual. A empresa também está ativa nas áreas
de saúde e inteligência artificial (IA). Muitos desses serviços estão economicamente e
tecnologicamente ligados, criando todo um ecossistema de serviços complementares
7
.
6 Do original: “The challenge for competition law is to escape a narrow emphasis on price in terms of final goods
as a measure of market power, which neglects too much of the real action and the sole consideration of the relevant market
framework. We need to adjust our regulatory framework lest it becomes perilously distant from the reality of real-world power.
The challenge is that the standard ‘relevant market’ approach explicitly focuses on the average behavior in one of the system’s
components (i.e., firms producing neatly separable, substitutable products) and the deviations of individual components from
this average (e.g., higher prices, lower quality, and reduced innovation (but fails to appreciate the dynamics of multiproduct and
multiactor ecosystems” (Jacobides; Lianos, 2021, p. 1207).
7 Tradução livre de:The second factor is the emergence of digital ecosystems. The Big Five are no longer single-product
89
O trabalho de Marc Bourreau e Alexandre de Streel (2019) também abordou o fenômeno
dos conglomerados digitais. Os autores traçam um breve histórico sobre o tratamento dos atos
de concentração conglomerados nos Estados Unidos e, principalmente, na Europa. Uma vez
estabelecidas as premissas iniciais e necessárias, os autores exploram potenciais novas teorias
de atos de concentração conglomerados relacionados à economia digital. Para os autores, duas
principais características explicam o aumento de conglomerados na economia digital: economias de
escopo no lado da oferta e sinergia de consumo no lado da demanda
8
.
Sobre o primeiro aspecto, Bourreau e Streel (2019, p. 9) explicam que a principal diferença
dos ecossistemas digitais em relação a economias de escopo estaria no aspecto de desenvolvimento
de produtos, pois o mesmo insumo poderia ser utilizado para múltiplos produtos
9
. Isso ocorreria
devido a características de modularidade dos produtos integrantes de um ecossistema digital. Apple
e Google seriam exemplos de empresas que se beneficiaram exatamente deste fenômeno.
Quanto ao segundo aspecto, as economias de escopo ocorreriam do lado da demanda,
devido ao fato de consumidores processarem suas transações dentro do mesmo ecossistema. Isto
poderia ocorrer devido a estratégias de empacotamento (bundling) por parte do ecossistema ou
investimentos pelo orquestrador do ecossistema que criem e aumentam a complementaridade entre
diferentes produtos do mesmo ecossistema
10
.
Bourreau e Streel (2019) demonstram que ecossistemas digitais colocam em jogo novas
dinâmicas de competição que não eram vistas em mercados ditos tradicionais. Sendo assim,
também não seria plausível que autoridades da concorrência não atualizassem suas preocupações
em atos de concentração envolvendo ecossistemas digitais, particularmente aquele com efeitos
conglomerados. As características peculiares dos ecossistemas digitais trazem novos desafios para
as autoridades de defesa da concorrência, alterando as dinâmicas dos conglomerados. As teorias do
dano tradicionalmente associadas aos atos de concentração conglomerados não são mais suficientes
para adequadamente se fazer o balanço entre efeitos pró e anticompetitivos.
companies. They are multinational technology conglomerates that have created sophisticated ecosystems of interconnected
products and services. Google, for example, long ceased to be a mere provider of a digital search engine. Since its foundation
in 1998, it has grown to oer services designed for work and productivity, email, scheduling and time management, cloud
storage, instant messaging and video chat, translation, mapping and navigation, video sharing, note-taking, photo organizing
and editing, a mobile operating system, a browser, smartphones, smart speaker, routers, and virtual reality headsets. It is also
active in health and artificial intelligence (AI). Many of these services are economically and technologically linked, creating an
entire ecosystem of complementary services.
8 “Apart from theories on market power, resources or internal capital market discussed above, we argue that two key
characteristics of the digital economy may also explain the rise of digital conglomerates: on the supply side, the presence of
important economies of scope in the development of digital products and services; on the demand-side, consumption synergies
derived by consumers when adopting product ecosystems. These two characteristics favour the development of wide product
portfolios by digital players” (Bourreau; Streel, 2019, p. 9).
9 “Economies of scope can arise not only at the production stage, but also at the product development stage. Firms
benefit from economies of scope in product development if some components of their existing products or services can be
reused for creating new product or service variants, that is, if these components are shareable inputs for product development
in the sense of Panzar and Willig (1981), and if there are economies of scale in producing them” (Bourreau; Streel, 2019, p. 9).
10 “For example, the Apple Watch can only be used together with an Apple iPhone and not with a smartphone from other
manufacturer. With this linkage, a consumer derives an additional benefit (a consumption synergy) when buying the iPhone
and the Apple Watch together, even though these two products are not sold as bundled by Apple. We will refer to such a set of
products sold separately by a firm, which generates consumption synergies for consumers when bought together, as a product
ecosystem(Bourreau; Streel, 2019, p. 12).
90
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Concorrência, Brasília, v. 12, n. 2, p. 85-103, 2024.
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3 PROPONDO NOVAS TEORIAS DO DANO PARA ECOSSISTEMAS DIGITAIS
Há algumas teorias do dano historicamente aplicadas em atos de concentração
conglomerados. De acordo com o Documento de Trabalho nº 001/2023, abordando a experiência do
Cade em concentrações não-horizontais, as principais teorias do dano empregadas pela autoridade
foram o fechamento de mercado, aumento de custo de rivais, discriminação, alavancagem de posição
dominante, acesso a informações sensíveis de concorrentes, efeitos coordenados, efeitos de portfolio
ou conglomerados e potenciais reações de empresas terceiras (Athayde, 2023, p. 27).
Tais teorias têm sido empregadas por autoridades de defesa da concorrência desde meados
do século XX. Todavia, elas não necessariamente são capazes de identificar os possíveis impactos
anticompetitivos de atos de concentração conglomerados com o objetivo de estabelecer ecossistemas
digitais. Conforme apontado pela Corte de Justiça da União Europeia em um dos casos envolvendo a
Google (European Union, 2022):
Assim, em um ‘ecossistema’ digital, que reúne várias categorias de fornecedores, clientes
e consumidores, fazendo-os interagir dentro de uma plataforma, os produtos ou serviços que
fazem parte dos mercados relevantes que compõem esse ecossistema podem se sobrepor ou estar
conectados entre si com base em sua complementaridade horizontal ou vertical. [...] Identificar as
condições de concorrência relevantes para a avaliação da posição de força econômica desfrutada
pela empresa em questão pode, portanto, exigir uma análise em vários níveis ou direções, a fim de
determinar o fato e a extensão das diversas restrições competitivas que podem ser exercidas sobre
essa empresa
11
.
Além do caso comentado acima, é indispensável comentar sobre a atuação da Competition
and Markets Authority (CMA) do Reino Unido no caso Microsot/ActivisionBlizzard e também a recente
decisão da Comissão Europeia no ato de concentração Booking/eTraveli, julgado em setembro de 2023.
Primeiramente, na operação entre Microsot/ActivisionBlizzard
12
, as preocupações iniciais
da autoridade do Reino Unido estavam na possibilidade de a Microsot usar sua ampla gama de
ativos (assets), tais como sistemas operacionais, serviços de nuvem, hardware, vídeo-games, o que
lhe proporcionaria uma grande vantagem no mercado incipiente de cloud gaming (Caarra, 2023).
Por sua vez, o caso entre Booking/eTraveli
13
ganhou notoriedade devido ao fato de ter sido
o primeiro ato de concentração bloqueado pela Comissão Europeia com fundamento em teorias do
dano relacionadas a ecossistemas.
A Booking é a principal agência de viagens online (online travel agency – OTA) na Área Econômica
Europeia (European Economic Area – EEA), com uma participação de mercado de aproximadamente
60%. As OTAs são responsáveis por processar mais de 100 bilhões de euros anualmente na EEA – e os
11 Tradução livre de: “Thus, in a digital ‘ecosystem’, which brings together several categories of supplier, customer and
consumer and causes them to interact within a platform, the products or services which form part of the relevant markets that
make up that ecosystem may overlap or be connected to each other on the basis of their horizontal or vertical complementarity.
[…] Identifying the conditions of competition relevant to the assessment of the position of economic strength enjoyed by the
undertaking concerned may therefore require multi-level or multi-directional examination in order to determine the fact and
the extent of the various competitive constraints that may be exerted on that undertaking”.
12 No Brasil, o ato de concentração entre Microsot e ActivisionBlizzard foi aprovado sem restrições pelo Cade em 2022
(Ato de Concentração nº 08700.003361/2022-46).
13 Case M.10615, Booking Holdings/Etraveli Group.
91
hotéis representam 40 bilhões de euros do valor total. Atualmente, um terço das reservas de hotéis
são feitas por OTAs e metade dos consumidores visita somente uma plataforma do tipo antes de
completar a compra. A importância do mercado online de viagens para a EEA e a relevância da Booking
no segmento são inegáveis. Todavia, a relevância da Booking no setor de OTAs a prejudicou quando a
empresa tentou adquirir a eTraveli, uma concorrente sueca menor, focada em reservas de voos.
A Comissão Europeia decidiu bloquear a operação pois haveria reforço da posição dominante
da Booking na EEA para serviços online de viagens. O reforço ocorreria em razão de três características
do negócio: primeiro, a operação proporcionaria a aquisição de consumidores pela Booking com
menores custos; segundo, enfraqueceria a contestabilidade nos mercados; terceiro, haveria reforço
de efeitos de rede da Booking.
Assim, uma vez identificadas as condições de competição, é necessário que novas teorias
do dano sejam propostas e investigadas pela autoridade da concorrência. As seções a seguir tratam
exatamente de propor teorias do dano mais consonantes com a realidade das plataformas digitais.
3.1 Economia de atenção
A ciência econômica trata de estudar as formas mais eficientes de se alocar recursos escassos,
seja no nível de indivíduos, de sociedades ou de empresas. O recurso mais escasso para o ser humano
é o tempo. Com isso, o tempo também passa a ser o recurso mais valioso para empresas que precisam
atrair consumidores. Na economia digital, há uma concorrência acirrada pelo tempo do usuário.
Ecossistemas digitais buscam desenvolver ferramentas que influenciem o usuário a gastar mais
tempo navegando em seu ecossistema, coletando, assim, o maior número de informações possíveis
do consumidor. Tais informações são utilizadas para financiar a plataforma, a partir de seu manejo
em publicidade dirigida, em feedback loop. Cria-se, assim, uma economia (ou indústria) de atenção
14
.
O protagonismo que as plataformas digitais possuem na economia atual fez com que discussões da
competição sobre a atenção do consumidor/usuário passassem a estar no radar das autoridades de defesa
da concorrência. John Newman defende que a atenção pode ser considerada como um produto, objeto
típico da análise de autoridades da concorrência, por demonstrar as características de escassez, rivalidade
e comercialização
15
. Dessa forma, não haveria óbice para que autoridades de defesa da concorrência
tratassem a atenção como um produto que pode resultar em aumento de poder de mercado de agentes
econômicos, ainda que tais agentes econômicos ofereçam serviços em suas plataformas a preço-zero.
O desafio para autoridades de defesa da concorrência coloca-se, portanto, quando da análise
de atos de concentração entre plataformas digitais que não cobram uma contrapartida financeira
de seus usuários (preço), mas sim monetizam a atenção deles a partir da venda de espaços para
14 “Since its inception, the attention industry, in its many forms, has asked and gained more and more of our waking
moments, albeit always, in exchange for new conveniences and diversions, creating a grand bargain that has transformed our
lives. In the process, as a society and individually, we have accepted a life experience that is in all of its dimensions – economic,
political, social, any way you can think of – mediated as never before in human history. And if each bargain in isolation seems
a win-win, in their grand totality they have come to exert a more ambiguous though profound influence on how we live” (Wu,
2016, p. 13).
15 “From an economic perspective, attention has become a product, the traditional subject of antitrust law. The myriad
products that fall within the scope of the antitrust laws share three key features: they are scarce, rivalrous, and tradeable.
Attention exhibits each of these characteristics, and can therefore also be treated through the familiar lens of product-market
analysis” (Newman, 2020, p. 7).
92
RENZETTI, Bruno Polonio. Teorias do dano em ecossistemas digitais. Revista de Defesa da
Concorrência, Brasília, v. 12, n. 2, p. 85-103, 2024.
https://doi.org/10.52896/rdc.v12i2.1088
anúncios, considerando que a análise tradicional de atos de concentração possui um foco bastante
intenso em efeitos nos preços dos produtos após a operação. Mas se os produtos são oferecidos a
preço-zero ao consumidor, como que esta análise pode ser conduzida?
De acordo com John Newman, a resposta para o questionamento acima passa primeiro por
um novo modelo para a definição de mercado relevante quando da análise de atos de concentração.
Tradicionalmente, o modelo utilizado para definição de mercados relevantes em atos de concentração
é o Teste do Monopolista Hipotético, que busca verificar se um suposto monopolista seria capaz de
impor um aumento de preços pequeno, mas significativo e não-transitório
16
. O problema aqui está
exatamente na utilização do preço como variável principal do teste. Em mercados de atenção, onde
o preço praticado é zero, tal teste não seria possível
17
. Em mercados de atenção, Newman propõe um
novo teste, focado não no aumento de preços, mas sim no aumento de custos de atenção, definindo
o mercado relevante a partir de um “pequeno, mas significante” aumento nos custos de atenção.
18
Também discutindo sobre métodos de definição de mercados relevantes em mercados de atenção,
Tim Wu oferece seu método com foco no “preço da atenção”. Inspirando no teste tradicional Small but
Significant Non-transitory Increase in Prices (SSNIP), Wu explica que seu modelo – o qual ele chama de
A-SSNIP, onde “A” significa atenção – busca tentar identificar como que consumidores reagiriam a um
aumento pequeno, mas significativo e não-transitório, no número de anúncios não desejados apresentados
a eles ou a quantidade de anúncios mostrados em certo produto (Wu, 2019, p. 797-798).
Além da definição de mercado relevante, a análise antitruste também demanda que seja
avaliada a participação de mercado dos agentes econômicos envolvidos no ato de concentração. Em
mercados em que o preço é positivo – isto é, maior que zero – elementos como o faturamento ou
vendas anuais são utilizados para estimar a participação de mercado das empresas. Esta dinâmica,
entretanto, não é possível em mercados de atenção, onde o preço é zero. Novas métricas são,
portanto, necessárias. Newman propõe três métodos para aferir a participação de mercado: tempo
gasto, número de usuários e faturamento com publicidade. Para o autor, o último método seria o mais
adequado
19
, ainda que não perfeito.
Newman pondera que a captura da atenção dos usuários não é um fim em si mesmo. Os
agentes econômicos – os quais ele denomina de “intermediários de atenção” – buscam formas de
monetizar a atenção capturada. A forma mais comum é comercializar a atenção dos usuários para
16 “The ‘SSNIP’ variant of the hypothetical-monopolist test has emerged as a particularly common method of antitrust
market definition. This test requires the plainti to prove that, in a hypothetical world in which a hypothetical firm controls
100% of an artificially demarcated area of marketplace activity, that hypothetical monopolist would likely impose a ‘Small but
Significant and Non-Transitory Increase in Price’ above a benchmark price on the candidate grouping of customers. The size of
the ‘small but significant’ price increases is usually a pleasantly round 5%. In merger cases, the benchmark price is usually the
price prevailing before the merger” (Newman, 2020, p. 20).
17 “The already-convoluted SSNIP test exhibits an obvious flaw in the face of zero-price transactions: as its name
suggests, it requires positive prices in order to function. But in a zero-price attention transaction, a natural person trades her
attention to an intermediary in exchange for access to a desired good or service. No fiat currency changes hands. As a result,
the SSNIP test becomes unworkable, for 5% of zero is still zero” (Newman, 2020, p. 20).
18 “What constitutes a “small but significant” increase in attention costs? In the broadcast-radio example, a 5% increase
in the amount of airtime devoted to advertisements would presumably suce. In a digital context like online search or personal
social networking, a 5% increase in screen space devoted to advertisements could similarly suce. Perhaps this seems inexact,
but it is no more arbitrary than choosing 5% as the approximate size of hypothetical price increases in positive-price contexts
(Newman, 2020, p. 20).
19 Newman aponta que o Judiciário americano, no caso FTC v. Facebook, rejeitou os métodos baseados em tempo gasto
e número de usuários para avaliar o poder de mercado da plataforma digital.
93
anunciantes. A depender do público capturado pelo intermediário, a atenção do usuário pode ser
mais ou menos valorizada por anunciantes. Dessa forma, diferenças no valor pago pelos anunciantes
aos intermediários seria uma variável competitiva importante, capaz de ditar mudanças de
comportamento e estratégia competitiva dos agentes envolvidos na captura de atenção e fornecendo
um fator importante para a análise concorrencial de tais mercados
20
.
A última etapa de análise antitruste em um mercado de atenção é buscar estabelecer os
potenciais danos relacionados a uma conduta anticompetitiva ou a um ato de concentração que
reforce certa posição dominante. Para tanto, Newman lança mão, novamente, da comparação com
mercados onde o preço é positivo. Em tais mercados, é comum o dano se traduzir em maiores preços
para o consumidor. Em mercados de atenção, também pode ocorrer a imposição de maiores preços
aos anunciantes – mas não abarcaria a questão de dano aos consumidores finais (uma questão
relevante quando se busca verificar danos em plataformas de dois lados). O dano ao consumidor seria
a sobrecarga de atenção (attention overcharge): quando um agente econômico exerce o seu poder de
mercado ao impor um custo maior de atenção do que seria constatado em um mercado pulverizado e
competitivo. A dinâmica é bastante similar ao que ocorre com monopolistas e mercados cartelizados,
nos quais o agente econômico dominante é capaz de aumentar o preço e diminuir a quantidade
produtos disponíveis no mercado, criando um peso-morto na economia
21
.
Tem-se, portanto, a concorrência pela atenção dos consumidores é uma das principais driving
forces por trás da competição entre plataformas digitais. Quanto maior o tempo que um usuário gasta
em uma plataforma, mais aquela plataforma terá acesso a dados sobre o consumidor, que poderão ser
utilizados para otimizar (no sentido de personalização) os anúncios apresentados ao consumidor na
plataforma. Ao aumentar o nível de personalização dos anúncios, estes se tornam mais efetivos e valiosos
para os anunciantes, de forma que as plataformas podem aumentar o preço cobrado dos anunciantes.
No âmbito de ecossistemas digitais, esta dinâmica apresenta preocupação adicionais.
Cobrando mais dos anunciantes, as plataformas aumentam seu faturamento e dispõem de maiores
recursos para reforçarem sua posição dominante, podendo ocorrer através da aquisição de
concorrentes visando a expansão para novos mercados. O ecossistema, assim, aumenta o seu número
de complementos, de forma que se torna muito difícil para o usuário acessar plataformas que não
façam parte do ecossistema. Além da estratégia de aquisições, o faturamento adicional adquirido
com a imposição de sobrecarga de atenção também pode ser utilizado para o desenvolvimento
interno de complementos pelo ecossistema. Ambas as estratégias – crescimento por aquisições e por
desenvolvimento interno – possuem o mesmo objetivo: fortalecer os efeitos de lock-in impostos aos
20 “In attention markets, users, viewers, and listeners barter their attention (and sometimes their personal information).
Just as firms do not seek to acquires raw materials like oil or iron ore as an end, attention intermediaries do not seek attention
for its own sake. Instead, they do so because attention is valuable to advertisers. As with other raw materials, the value of
attention can vary widely across persons, at dierent times, in dierent settings, and so forth. Certain users’ attention, or
certain types of attention, can be especially prized. Thus, dierences in value will aect attention intermediaries’ competitive
incentives and behavior – and are therefore important for antitrust purposes” (Newman, 2020, p. 31).
21 Attention overcharges are – or at least should be – of substantial practical import and concern for antitrust
authorities. Real-world empirical research on the broadcast radio industry suggests that concentrated market power can yield
higher attention costs. In the wake of the 1996 Telecommunications Act, which eliminated longstanding ownership caps on
radio-station ownership, a massive wave of consolidation swept the industry. The Department of Justice, tasked with reviewing
these mergers and acquisitions, looked only for harm to advertisers. Enforcers ignored the possibility of attention overcharges.
Perhaps unsurprisingly, subsequent research demonstrates that as local radio markets became more concentrated, the amount
of airtime devoted to advertisements increased. These eects were particularly pronounced during times of day when listeners
had relatively few alternatives” (Newman, 2020, p. 37).
94
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usuários, fazendo com gastem o maior tempo possível no ecossistema.
Autoridade de defesa da concorrência devem ter atenção a tais estratégias ao analisarem atos
de concentração com efeitos conglomerados. Os frameworks de análise propostos por Wu e Newman
são pontos interessantes de partida, mas não os únicos. O desenvolvimento de novos métodos depende
do devido entendimento das estratégias das plataformas. Entre elas, está a imposição de dark patterns
e arquitetura operacional que impõe dificuldades para o usuário se desconectar do ecossistema.
3.2 Dark patterns
Ecossistemas digitais dependem da atenção do usuário para se viabilizarem financeiramente.
A partir da coleta de dados e hábitos de consumo dos consumidores finais, as plataformas são capazes
de oferecer um produto mais eficiente para as empresas de publicidade que adquirem espaços de
anúncios. Quanto maior a quantidade de dados disponíveis sobre o consumidor, mais efetivo será
o anúncio. Dessa forma, os ecossistemas possuem claros incentivos para promover estratégias que
prendam o consumidor o maior tempo possível em suas plataformas, de forma a extrair mais dados.
Dentre tais estratégias, uma se destaca e merece maior atenção: a presença de dark patterns.
Dark patterns (ou “padrões obscuros, em tradução livre)
22
podem ser definidos como opções
apresentadas por uma plataforma ao usuário com o objetivo de que o usuário tome uma decisão
que não seja a melhor para ele, mas sim para a plataforma
23
. Dark patterns são desenvolvidas pelas
plataformas com o objetivo de que o usuário tome alguma decisão
24
em específico: seja comprar
algum produto, navegar por mais tempo em alguma página ou ter grandes dificuldades em cancelar
seu cadastro de uma rede social ou lista de mailing. Há grande presença de dark patterns no ambiente
online. Em um estudo de 2019, Mathur et al. analisaram mais de 11 mil páginas de e-commerce,
constatando 1818 dark patterns em 1254 das páginas, com grande prevalência de estratégias
enganosas nas páginas mais populares de comércio eletrônico.
O estudo de dark patterns se insere dentro de um campo maior de conhecimento,
denominado de arquitetura de escolhas (choice architecture). Este campo de estudo busca investigar
como o comportamento humano pode ser modulado a partir das escolhas apresentadas à pessoa.
Plataformas podem modular o comportamento do usuário a partir da forma como que opções são
apresentadas ao usuário final (CMA, 2022).
22 A criação do termo dark patterns é atribuída a Harry Brignull, especialista em design de interfaces de usuários:
“Brignull described dark patterns as ‘tricks used in websites and apps that make you buy or sign up for things that you
didn’t mean to’, and he created a taxonomy of dark patterns using examples from shopping and travel websites to help raise
awareness. The taxonomy documented patterns such as ‘Bait and Switch’ (the user sets out to do one thing, but a dierent,
undesirable thing happens instead), and ‘Confirmshaming’ (using shame tactics to steer the user into making a choice)” (Mathur
et al., 2019, p. 3).
23 Dark patterns are user interfaces whose designers knowingly confuse users, make it dicult for users to express
their actual preferences, or manipulate users into taking certain actions. They typically prompt users to rely on System 1
decision-making rather than more deliberate System 2 processes, exploiting cognitive biases like framing eects, the sunk cost
fallacy, and anchoring. The goal of most dark patterns is to manipulate the consumer into doing something that is inconsistent
with her preferences, in contrast to marketing eorts that are designed to alter those preferences” (Luguri; Strahilevitz, 2021, p.
44).
24 “At best, dark patterns annoy and frustrate users. At worst, they can mislead and deceive users, e.g., by causing
financial loss, tricking users into giving up vast amounts of personal data, or inducing compulsive and addictive behavior in
adults and children” (Mathur et al., 2019, p. 2).
95
Existem diversas implicações das dark patterns no cotidiano dos usuários, desde o aumento
do nível de dependência do usuário em relação a plataforma até a redução não-intencional de nível
de proteção de privacidade. O foco desta seção, entretanto, será os possíveis efeitos anticompetitivos
derivados das dark patterns. O trabalho de Gregory Day e Abbey Stemler (2020, p. 6.) foi um dos
primeiros a investigar o tema das dark patterns a partir de uma lente de defesa da concorrência:
Argumentamos que a manipulação online, em muitos casos, deve ser considerada
anticompetitiva. O bem-estar do consumidor é prejudicado quando uma plataforma
exclui a concorrência e coage os usuários a prestarem atenção, gastarem dinheiro,
gerarem dados ou revelarem informações pessoais contra seus próprios interesses;
isso transfere injustamente riqueza dos consumidores para a empresa, o que alguns
estudiosos insistem que as leis antitruste foram criadas para corrigir. Para sustentar
esse argumento, demonstra-se que a manipulação
online prejudica a tomada
de decisões, não apenas explorando vulnerabilidades cognitivas, mas também
causando alterações físicas no cérebro. Isso gera uma série de efeitos, incluindo
ansiedade, depressão, comportamento antissocial, tomada de riscos e – relevante
para o antitruste – a erosão da privacidade e do bem-estar do consumidor. A
maneira pela qual as grandes empresas de tecnologia constroem poder de mercado
manipulando o livre-arbítrio não é, como argumentamos, uma forma legítima de
concorrência
25
.
Em ecossistemas digitais, o uso de dark patterns pode ser ainda mais catalisado. Os
orquestradores
26
de ecossistemas possuem incentivos necessários para promover designs que
limitem o poder de escolha do usuário, prendendo-o ao ambiente do ecossistema. Este problema é
ressaltado com a expansão do ecossistema para outros mercados não explorados antes. Por exemplo,
a expansão de uma plataforma varejista para o mercado de serviços financeiros digitais, ambas partes
de um mesmo ecossistema, proporciona a possibilidade da dark patterns para que o usuário somente
utilize dado serviço financeiro para fazer suas compras na plataforma da varejista. O ecossistema
expande sua teia e manipula comportamentos que tornam ainda mais difícil para o consumidor sair
da área de influência do ecossistema.
Em casos assim, pode-se cogitar da dificuldade de novos entrantes em desafiarem a
posição dominante do ecossistema incumbente. Para que a posição de mercado do incumbente seja
efetivamente contestada, um novo entrante teria que atingir uma massa crítica
27
de consumidores
25 Tradução livre do original: “We argue that online manipulation should in many instances rise to the level of
anticompetitive. Consumer welfare erodes when a platform excludes competition and coerces users into paying attention,
spending money, generating data, or revealing personal information against their best interests; this unreasonably transfers
wealth from consumers to the firm, which some scholars insist is what antitrust laws were meant to redress. To make this
case, online manipulation is shown to impair decision-making by not only exploiting cognitive vulnerabilities but also causing
physical alterations of the brain. This produces an array of eects, including anxiety, depression, antisocial behavior, risk-
taking, and – salient for antitrust – the erosions of privacy and consumer welfare. The manner in which big tech builds market
power by manipulating free will is not, as we argue, a legitimate form of competition.
26 “The organization of an ecosystem can take dierent forms. It can be decentral or central, collective or unilateral,
bottom-up or top-down. In the major digital ecosystems, which have been the source of constant concerns about competition
over the last years, one can observe that a single firm alone that operates one or a few central platforms in the ecosystem
takes on the role of the ‘orchestrator’. The platform operator has rule-setting or orchestrating power. The other firms in the
ecosystem have little or no agency and largely have to follow suit. In the big digital ecosystems, governance is therefore central,
unilateral, and more top-down than bottom-up” (Hornung, 2023, p. 7).
27 “Critical mass refers to the minimal level of demand that platforms must have on their various sides. Platforms that
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e dados que se torna praticamente impossível em decorrência das condutas anticompetitivas do
incumbente
28
. Aqui, a conduta anticompetitiva seria reduzir a capacidade de escolha do consumidor,
com o único objetivo de atrair sua atenção por mais tempo, extraindo maior número de dados e,
assim, financiar a plataforma por meio de anúncios mais caros.
Assim como monopolistas possuem a habilidade de impor maiores preços, ecossistemas de
plataformas digitais dominantes possuem a habilidade de impor mais dark patterns a seus usuários.
O fomento de um ambiente mais competitivo é remédio indispensável para reduzir estes danos.
Somente com a existência de ecossistemas concorrentes os usuários terão a opção de migrar sua
demanda, sinalizando o descontentamento com práticas enganosas
29
. Para tanto, é necessária
atuação incisiva das autoridades da concorrência, principalmente no controle prévio de estruturas,
pois a expansão inorgânica por meio de atos de concentração conglomerados é instrumento muito
utilizado para aumentar a influência do ecossistema, reforçar sua posição dominante e submeter o
usuário a uma menor qualidade de serviço.
3.3 Anexação de plataformas
Uma das teorias do dano mais recentemente formuladas e que pode ser aplicada em um
contexto de atos de concentração conglomerados envolvendo ecossistemas de plataformas digitais
diz respeito à anexação de plataformas (platform annexation). Elaborada de maneira inédita por
Susan Athey e Fiona Scott Morton (2022, p. 679), o fenômeno da anexação de plataformas ocorre
quando uma plataforma adquire ferramentas de multi-homing e opera tais ferramentas de forma a
reduzir ou restringir a eficiência do multi-homing praticado pelos usuários finais. As autoras explicam
como o conceito funciona:
Como isso funciona? A anexação de plataformas perturba o multi-homing ao
direcionar os usuários para sua própria plataforma e afastá-los das plataformas rivais.
Quando uma grande plataforma priva uma concorrente menor de participantes em
qualquer um dos lados do mercado, ela reduz a competitividade da plataforma menor
(ou desencoraja a entrada de novas e menores plataformas), diminuindo, assim, a
pressão competitiva sobre si mesma. Essa vantagem geralmente se reforça, pois gera
uma maior concentração de atividade na plataforma maior e a marginalização ou
saída da plataforma menor. Esse tipo de ciclo de retroalimentação é mais comum
em plataformas multilaterais do que em empresas da “antiga economia”. E o ciclo
reach that level are viable and positioned to grow more through positive feedback eects. Platforms that fall short of that level
are not viable. […] When platforms are conceived they, of course, do not have any customers on any side. The challenge for
a new platform is to reach critical mass. […] Strategies that prevent platform entrants from gaining critical mass or that push
platforms below critical mass can therefore exclude competitors and preserve market for the predator” (Evans; Schmalensee,
2013, p. 29).
28 Sobre o tema e para um estudo empírico de aferição de massa crítica, v. Morais, Lima e Takahashi (2023).
29 “First, a monopolist enjoys greater ability to employ dark patterns than firms engaged in vigorous competition. A
user who wishes to abandon YouTube lacks alternatives because the other option, Google Video, owns YouTube. However,
in a competitive market, consumers may abandon firms inflicting unreasonable privacy costs for more ecient rivals – an
expectation expressed by leadership in the FTC and DOJ. If the market lacks suitable options, competition should inspire firms
to meet consumer demand by innovating less manipulative options. Not to say that all firms would lessen manipulation, but
competition should lead some firms to oer a privacy-conscious alternative backed by information regarding decisional privacy,
enhancing consumer welfare. This is especially true in digital markets where firms must compete along privacy dimensions”
(Day; Stemler, 2020, p. 38).
97
de retroalimentação aumenta a eficácia da estratégia da plataforma, permitindo-lhe
aumentar seus lucros e reduzir o bem-estar dos participantes da plataforma, tanto
no curto quanto no longo prazo
30
.
O devido entendimento da teoria do dano baseada em anexação de plataformas passa,
necessariamente, pela compreensão dos impactos concorrenciais do multi-homing. Como se sabe,
o fenômeno do multi-homing é particularmente importante em mercados digitais, ao permitir que
o usuário final esteja conectado a diversas plataformas simultaneamente. O fato de o usuário ser
um usuário ativo na plataforma A não impede que ele também seja na plataforma B – elas não são
excludentes entre si. O usuário, assim, adere a múltiplas plataformas e escolhe qual delas usar no
momento que precisa interagir com a plataforma. A competição entre plataformas passa, portanto,
do momento de adesão para o momento de uso
31
.
O grande mérito do multi-homing está em proporcionar mais escolhas aos usuários finais.
O usuário não se torna refém somente de uma plataforma. Com o multi-homing, usuários podem
migrar de uma plataforma a outra, sem maiores fricções. E isto é verdade para ambos os lados de
uma plataforma de dois lados. Não somente consumidores, mas também vendedores ou prestados
de serviços, que estão do lado oposto da plataforma, se beneficiam do multi-homing ao listarem seus
serviços ou produtos em mais de uma plataforma, sem qualquer tipo de exclusividade. As barreiras à
entrada são, assim, reduzidas (Athey; Morton, 2022, p. 682)
32
.
Além da possibilidade de se inscrever em múltiplas plataformas, o multi-homing também
pode ser realizado por intermédio de uma ferramenta específica que permite o acesso a plataformas
concorrentes. Nesse cenário, Athey e Morton (2022, p. 689) apresentam um exemplo didático e
hipotético. Suponha que exista uma ferramenta de multi-homing que auxilie o consumidor a otimizar
seu deslocamento, oferecendo soluções de transporte por carros, trens ou metrô. Imaginando que
esta plataforma se torna bastante popular, com grande número de usuários e alcançando escala
relevante. O próximo passo é imaginar que a empresa X de carros compre a ferramenta de multi-
30 Tradução livre do original: “How does it work? Platform annexation disrupts multi-homing by steering users to its
platform and away from platforms of rivals. When a large platform deprives a smaller rival of participants on either side of the
market, it reduces the competitiveness of the smaller platform (or deters entry by new, smaller platforms) and thus lessens the
competitive pressure on itself. This advantage is oten self-reinforcing because it generates further concentration of activity
in the larger platform and marginalization or exit of the small platform. This kind of feedback loop oten characterizes multi-
sided platforms more than “old economy” businesses. And the feedback loop increases the ecacy of the platform’s strategy,
enabling it to increase its profits and reduce welfare for platform constituents in the short and long run”.
31 “Mercados digitais também podem se desenvolver com características de singlehoming ou multihoming. Em síntese,
essa característica está ligada ao momento em que ocorre a competição entre plataformas (i.e., o momento da adesão ou o
momento do uso). Em mercados de singlehoming, a competição entre as diversas plataformas costuma ocorrer no momento da
adesão. Assim, a competição pela adesão do consumidor nesses mercados tende a ser mais intensa. Mercados de multihoming,
por exemplo, usualmente permitem a adesão do consumidor a múltiplas plataformas digitais simultaneamente, transferindo a
competição para o momento do uso das plataformas. Nesse contexto, considerando que o consumidor toma uma nova decisão
a cada interação, a intensidade da competição entre plataformas costuma estar ligada à conquista do usuário no momento do
uso” (Renzetti; Bueno; Paixão, 2020, p. 33-34).
32 “A tool that enables frictionless multi-homing is a significant threat to a large incumbent platform because it
empowers participants to shit their business to other platforms; a rival platform with a good oer will be able to take share
away from the incumbent, and a multi-homing tool will substantially reduce the costs of attracting sellers to a new platform,
reducing the barriers to entry and helping smaller platforms compete against larger ones. In particular, in the presence of
eective multi-homing tools, a new platform can more easily attract participants since the participants can maintain their
habits and their relationships with existing platforms while experiencing incremental value from a new platform. The new
platform simply needs to oer and additional value proposition – for example, bringing a new segment of buyers or sellers to
the market, charging a lower take rate, or oering better quality – and an eective multi-homing tool should surface the value
proposition to participants” (Athey; Morton, 2022, p. 682).
98
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homing. Com isso, a empresa teria incentivos para maximizar seus lucros a partir do fechamento de
mercado para os concorrentes. São várias as estratégias que a empresa X poderia utilizar para fechar
o mercado, incluindo self-preferencing para seus próprios motoristas e a recusa de interoperabilidade
com concorrentes. Assim, a plataforma concorrente se tornaria obsoleta, reforçando a posição
de mercado da empresa X, e sinalizando para potenciais concorrentes a dificuldade que seria se
estabelecer em tal mercado
33
.
A estratégia de anexação de plataformas apresenta algumas implicações concorrenciais. A
incorporação de uma ferramenta de multi-homing em um ecossistema digital, por exemplo, reduz
a possibilidade de o usuário utilizar tal ferramenta para navegar entre plataformas concorrentes.
Uma vez incorporada ao ecossistema, o orquestrador do ecossistema terá incentivos para evitar
que consumidores consigam navegar em plataformas externas ao ecossistema. Com a ausência da
possibilidade de competição, o ecossistema pode cobrar maiores taxas de vendedores, por exemplo,
e um maior preço do produto final aos consumidores.
A questão passa a ser, portanto, como se deve dar a análise da estratégia. Aqui, pode-se cogitar
de análise mais aprofundada tanto no controle de estrutura quanto no controle de condutas, ambas
com o objetivo final de excluir competidores do mercado. Por exemplo, a anexação de plataformas
pode impor maiores custos de aquisição de consumidores (insumos) aos rivais, tornando o negócio
concorrente inviável. Importante notar que a estratégia de aquisição de plataformas poderia reduzir
a concorrência horizontal através de estratégias verticais de fechamento de mercado.
Em um cenário de ecossistemas de plataformas digitais, a possibilidade de anexação de
plataformas que oferecem multi-homing merece ser particularmente investigada, dado que o multi-
homing é um dos mecanismos capazes de coibir o abuso de poder de mercado do ecossistema
dominante. Por se tratar de teoria novel, cabe às autoridades da concorrência incorporarem em seu
leque de opções durante a aplicação das leis, tomando as devidas cautelas ao testar a nova teoria.
Trata-se, ao cabo, de nova opção no cardápio renovado de teorias do dano disponíveis às autoridades.
3.4 Redução de concorrência potencial ou nascente
A preocupação com a eliminação de concorrência permeia questões referentes a atos de
concentração conglomerados desde que os primeiros casos foram apreciados na Suprema Corte
americana. Após a ascensão da Escola de Chicago e seus pensamentos menos intervencionistas quanto
a atos de concentração – principalmente os conglomerados – pouco se discutiu sobre os efeitos de
eliminação de concorrência. Entretanto, no atual cenário de economia digital e grande relevância de
ecossistemas digitais, a discussão renasceu, a partir de novos pressupostos e parâmetros.
33 Platform annexation would benefit X, particularly relative to its closest competitor Y, and might even benefit users
of X in the short run. If X’s platform has indirect network eects and scale economies, it will benefit, but it will not have as
much incentive to pass on those benefits to users ater it has the market power that comes with excluding Y. Because platform
annexation will harm users of Y, reduce entry, and lead to less competition in car services, it will not be in the interest of
consumers. Then, the foreclosure of Y would allow X to increase its take rate and reduce innovation. Furthermore, in a scenario
where the owner of a mobile operating system (a type of platform) also owned either car service X or Y, the situation could
become even more concerning. Tools could be integrated into the operating system’s mapping sotware, or competing tools
could be disadvantaged or prohibited from distribution through application stores. The platform’s tools could be given a data
advantage. In general, market power in adjacent market can be used to enable or reinforce the platform annexation strategy”
(Athey; Morton, 2022, p. 689).
99
O principal trabalho sobre o tema é o de Cunningham, Ederer e Ma (2020, p. 41-42). A partir da
análise de estudos de casos de um setor econômico específico – o setor farmacêutico – os autores
concluem que os agentes econômicos incumbentes possuem incentivos para adquirir concorrentes
inovadores com o simples objetivo de descontinuarem seus projetos e evitarem que a empresa-
alvo venha a se tornar um concorrente relevante no futuro. Importante ressaltar que os autores
também demonstram que as conclusões do artigo, ainda que tenham sido feitas com base no setor
farmacêutico, elas podem ser transportadas para outros econômicos, demandando maior análise das
autoridades antitruste.
As conclusões apresentadas por Cunningham, Ederer e Ma colocam bastante peso na perda
de inovação potencial que uma killer acquisition poderia causar. A falta de inovação no mercado seria,
portanto, um dano direto ao bem-estar do consumidor. Em artigo posterior, Hemphill e Wu (2020, p.
1886-1888) ampliam as preocupações a partir de preocupações com a “competição nascente”. De
acordo com os autores, um competidor nascente seria um agente econômico o qual a inovação, ainda
que não completamente certa, representa uma ameaça para o incumbente.
A questão passa a ser, portanto, como proteger os competidores nascentes e a inovação
promovida por eles. Aqui, tem-se a necessidade de melhor avaliar os atos de concentração
envolvendo incumbentes e competidores nascentes, dado que a motivação por trás do negócio pode
ser a simples exclusão do competidor do mercado. Uma crítica válida sobre maior escrutínio de atos
de concentração envolvendo empresas nascentes é que a venda de startups é a estratégia dominante
para a saída de investidores (principalmente fundos de venture capital) e fundadores da empresa
(Lemley; Mccreary, 2021). Todavia, os efeitos negativos causados ao ambiente concorrencial pelas
aquisições em série de incumbentes legitimam que as autoridades da concorrência aumentam sua
atenção a tais operações. Não se trata de bloquear todo ou qualquer ato de concentração, mas sim
de submetê-los ao crivo da autoridade concorrencial, a fim que se possa mapear os movimentos de
mercado e identificar potenciais efeitos anticompetitivos antes que seja tarde demais.
Além da mera subtração de um agente econômico do mercado, a aquisição de competidores
nascentes possui outra particularidade importante no ambiente de ecossistemas digitais. A aquisição
pelo incumbente pode se dar não para necessariamente “matar” o concorrente potencial, mas evitar que
concorrentes já estabelecidos tenham acesso à tecnologia inovadora da startup, que pode funcionar
como um complemento para o ecossistema, gerando, assim, mais valor para o próprio ecossistema.
O devido entendimento da importância estratégica de complementos em um ecossistema
indispensável para se formular uma teoria do dano aplicável a ecossistemas digitais com base
em aquisições matadoras ou de competidores nascentes. Ecossistemas aumentam seu valor para
os consumidores a partir do momento em que oferecem maiores complementos para os usuários.
Da mesma forma, é do interesse do próprio ecossistema maximizar o número de complementos
disponíveis e, assim, prender a atenção do usuário por mais tempo dentro do ecossistema. Dessa
forma, tanto aquisições matadoras que buscam obstar a inovação e, com isso, evitar que ecossistemas
concorrentes tenham acessos a tal complemento, e aquisição de concorrentes nascentes e sua
internalização no ecossistema, obstando que ecossistemas concorrentes oferecem a ferramenta como
complemento, podem ser levantadas como teorias do dano capazes de gerar danos à concorrência.
Nesse cenário, pode-se cogitar de um enquadramento dual, tanto no controle de estruturas
quanto no controle de condutas. As implicações para o controle de estruturas são mais diretas e
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claras. As autoridades de defesa da concorrência devem revisitar seus critérios de notificação para
diminuir o número de atos de concentração que ocorrem sem a análise dos órgãos competentes
34
.
Na vertente das condutas, pode-se cogitar de investigações para aferir condutas como “aquisições
em série” conduzidas por um incumbente com poder de mercado, visando somente a exclusão de
potenciais competidores do mercado. Esta última teoria do dano está sendo testada pelo FTC em seu
caso contra o Facebook
35
.
Importante notar que as 2023 Merger Guidelines do FTC e do DOJ trazem, de maneira expressa,
novas orientações para a análise de atos de concentração. Entre tais orientações está a Guideline 8, a
qual deixa claro que as autoridades podem analisar toda a série de aquisições de dada empresa caso
entendam que a estratégia de aquisições em série representa redução da competição e tentativa de
estabelecer um monopólio (FTC; DOJ, 2023)
36
.
O desafio para autoridades da concorrência, portanto, está em desenvolver ferramentas e
mecanismos que permitam não somente a análise de atos de concentração através de notificação obrigatória
das operações, mas também estabelecer estudos de mercados periódicos, capazes de analisarem diferentes
mercados relevantes, avaliando o nível de concentração, competitividade e inovação
37
.
4 CONCLUSÃO
Aproveitando-se das novas possibilidades de crescimento que a economia digital
proporciona, grandes agentes econômicos se aproveitam da reduzida preocupação das autoridades
da concorrência com efeitos conglomerados e reforçam sua posição dominante a partir da expansão
para mercados antes não explorados, principalmente a partir da criação de ecossistemas digitais.
34 Em recente estudo realizado pela Comissão Europeia para avaliar a efetividade de seus mecanismos de controle
de estruturas foi avaliada exatamente a questão da falta de análise de atos de concentração que potencialmente teriam um
impacto na concorrência, mas não alcançam os critérios de faturamento necessários. De acordo com as conclusões do estudo:
“(267) In any case, the Evaluation has shown that, under the current jurisdictional rules, a number of transactions that could
potentially have an impact on competition in the internal market are not caught by the jurisdictional thresholds of the EU
Merger Regulation. Although this issue has partially been mitigated by referrals from Member States, certain concentrations
with a cross-border impact in the EU where the turnover was not indicative of the competitive significance of (some of) the
merging companies were not reviewed by the Commission and, in some case, by any Member State. (…) (269) In any event,
the Evaluation identified the need to continue to closely monitor business developments in this area, notably in sectors
such as digital and pharma, and to monitor experience in other jurisdictions. Jurisdictional changes at national level are
an opportunity to learn from other competition authorities and may also contribute to easing the referral of cases to the
Commission. Continued monitoring should also encompass the Commission’s practice in handling referrals under Article 22 of
the EU Merger Regulation” (European Commission, 2021, p. 74).
35 “77. Central to Facebook’s eorts to ‘derisk’ the transition to mobile was its strategy to buy or bury innovators
threatening to out-compete Facebook in the new mobile environment. 78. Facebook’s anticompetitive course of conduct
includes the acquisition and continued control of Instagram, which has neutralized a significant independent personal social
networking provider; and the acquisition and continued control of WhatsApp, which has neutralized a significant competitive
threat to Facebook’s personal social networking services monopoly. Acquiring these competitive threats has enabled Facebook
to sustain dominance – to the detriment of competition and users – not by competing on the merits, but by avoiding competition”
(FTC ALLEGES […], 2021).
36 “In expanding antitrust laws beyond the Sherman Act through passage of the Clayton Act, Congress intended ‘to
permit intervention in a cumulative process when the eect of an acquisition may be a significant reduction in the vigor of
competition, even though this eect may not be so far-reaching as to amount to a combination in a restraint of trade, create a
monopoly, or constitute an attempt to monopolize” (FTC; DOJ, 2023, p. 23).
37 “In sum, the observed tendencies in digital markets suggest that lax merger control rules and poor oversight of the
market might have led competition authorities to overlook the possibility of successful firms engaging in exclusionary conduct
to discourage and prevent the entry and growth of competitors, and led authorities to fail to challenge nascent potential
competitor acquisitions, including killer acquisitions” (Kira, 2021, p. 85).
101
Frente a um novo problema, novas soluções também são necessárias. As tradicionais teorias
do dano associadas a atos de concentração conglomerados, desenvolvidos em um período em que
os grandes protagonistas econômicos eram empresas de capital intensivo, como bens duráveis, não
mais se aplicam aos efeitos conglomerados relacionados a plataformas digitais. Se as autoridades
da concorrência realmente desejam prestar mais atenção aos atos de concentração conglomerados
envolvendo ecossistemas digitais, deve haver uma atitude proativa dos responsáveis, elaborando
teorias do dano que sejam mais relacionadas à realidade econômica do século XXI.
As teorias do dano aqui propostas buscam proporcionar um roadmap de análise de
futuras operações. São diversos os caminhos (teorias do dano) que uma autoridade concorrencial
de vanguarda pode seguir para enfrentar as possíveis implicações anticompetitivas de um ato de
concentração conglomerado envolvendo ecossistemas digitais. As opções aqui apresentadas não
são, de forma alguma, exaustivas. O importante é que se reconheça a necessidade de superar noções
tradicionais de efeitos conglomerados e se desenvolvam teorias do dano capazes de abordar as
novas preocupações concorrenciais postas por operações envolvendo ecossistemas digitais. Nesse
sentido, talvez seja mais produtivo que as autoridades deixem de se prender a conceitos estáticos,
como efeitos horizontais, verticais e conglomerados, e passem a buscar uma aplicação transversal de
teorias do dano (Fernandes, 2023).
Se o enforcement da concorrência tiver que cometer erros em mercados digitais, que sejam
erros do tipo 1. Em mercados digitais, a matriz de erro na análise de casos pelas autoridades de defesa
da concorrência é diferente do que o preceituado pela análise mais ortodoxa: falsos positivos são
raros e impõem quase nenhum custo a mais, enquanto falsos negativos são relativamente comuns e
impõem grandes custos ao mercado e às autoridades de defesa da concorrência.
Devemos caminhar para uma prática antitruste onde não haja diferenciação de metodologia e de
teorias do dano para análise de atos de concentração com efeitos horizontais, verticais ou conglomerados.
Talvez nem devêssemos mais falar em mercados relevantes, mas sim em ecossistemas e suas interações
para verdadeiramente buscar aferir qual a influência competitiva de certos atores econômicos. As
fronteiras são cada vez mais turvas e se ficarmos atrelados a classificações herméticas corremos o risco
de chancelar condutas anticompetitivas e atos de concentração potencialmente problemáticos.
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