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RAFFOUL, Jacqueline Salmen. A potencial desarticulação entre a liberdade econômica e
privacidade digital em condutas anticompetitivas: estudos de casos sobre acesso a dados
pessoais dos consumidores em situações de abuso de posição dominante. Revista de Defesa
da Concorrência, Brasília, v. 13, n. 1, p. 194-208, 2025.
https://doi.org/10.52896/rdc.v13i1.1435
A POTENCIAL
DESARTICULAÇÃO ENTRE
A LIBERDADE ECONÔMICA
E PRIVACIDADE
DIGITAL EM CONDUTAS
ANTICOMPETITIVAS:
ESTUDOS DE CASOS SOBRE
ACESSO A DADOS PESSOAIS
DOS CONSUMIDORES EM
SITUAÇÕES DE ABUSO DE
POSIÇÃO DOMINANTE
1
The potential disarticulation between economic
freedom and digital privacy veried in anti-
competitive conducts: case studies about the
access to consumer personal data in situations
of abuse of dominant position
Jacqueline Salmen Raoul
2
Centro Universitário de Brasília (Ceub) – Brasília/DF, Brasil
RESUMO ESTRUTURADO
Objetivo: com a economia digital, diferentes áreas jurídicas estão cada vez mais interligadas, de modo
que a atuação concorrencial, preventiva ou repressiva quanto a direitos econômicos, pode refletir no
bem-estar do consumidor, em relação a direitos civis, inclusive no âmbito da privacidade. Dentro
Editor responsável: Prof. Dr. Victor Oliveira Fernandes, Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), Brasília, DF, Brasil.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5250274768971874. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5431-4142.
1 Recebido em: 05/09/2024 Aceito em: 11/06/2025 Publicado em: 25/06/2025
2 Doutoranda e Mestre pelo Centro Universitário de Brasília (Ceub), com doutorado sanduíche na Universidade Paris 1
Panthéon- Sorbonne. Sócia do Carvalho, Machado e Timm. Foi professora assistente de Relações Internacionais no Insper. Ex-
-consultora jurídica do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento no Cade. Foi servidora Pública no Departamento
de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC), da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon).
E-mail: jsalmenraoul@gmail.com Lattes: http://lattes.cnpq.br/9867374892040322
ORCID: http://orcid.org/0000-0001-6538-7961
9
195
desse contexto, o presente artigo avalia a potencial desarticulação entre direitos civis e econômicos
considerando em especial a utilização indevida de dados pessoais de consumidores, em situação de
abuso de posição dominante. O presente estudo, assim, aborda a possibilidade de harmonização de
interesses e direitos aparentemente opostos no âmbito da competência do Cade.
Método: utilizou-se da pesquisa documental, incidente sobre a Lei do Sistema Brasileiro de Defesa da
Concorrência e a Lei Geral de Proteção de Dados. Além disso, o artigo também se baseou em pesquisa
jurisprudencial e bibliográfica, inclusive com a utilização dos institutos jurídicos de abuso de posição
dominante. Ademais, é feito o estudo de três casos concretos a partir dos instrumentos analíticos
mencionados e em duas situações diferentes de condutas consideradas anticompetitivas.
Conclusões: a suposta desarticulação histórica entre direitos econômicos e de privacidade não procede
no contexto atual. Por meio da atuação de autoridades concorrenciais, é possível compatibilizar
os interesses e prerrogativas envolvidos como meio de promover o bem-estar do consumidor no
ambiente digital.
Palavras-chave: privacidade digital; condutas anticompetitivas; liberdade econômica; desarticulação;
dados pessoais.
STRUCTURED SUMMARY
Objective: with the digital economy, dierent legal areas are increasingly interconnected. For such
reason, competitive, preventive or repressive actions regarding economic rights can reflect on
consumer well-being, in relation to civil rights, including privacy. Within this context, this article
evaluates the potential disarticulation between civil and economic rights, mainly considering misuse
of consumers’ personal data, in situations of abuse of a dominant position. The present study,
therefore, evaluates the possibility of harmonizing apparently opposing interests and rights within
the scope of Cade’s competence.
Method: documentary research was used, focusing on the Brazilian Competition Defense System
Law and the General Data Protection Law. Furthermore, the article was also based on jurisprudential
and bibliographical research, including the use of legal institutes of abuse of dominant position.
Furthermore, three concrete cases are studied using the mentioned analytical instruments and in two
dierent situations of conduct considered anti-competitive.
Conclusions: the supposed historical disarticulation between economic and privacy rights does
not apply in the current context. Through the actions of competition authorities, it is possible to
reconcile the interests and prerogatives involved as a means of promoting consumer well-being in
the digital environment.
Keywords: digital privacy; anticompetitive conducts; economic freedom; disarticulation; personal data.
Classificação JEL: k21; k38
Sumário: 1. Introdução; 2. As barreiras relacionadas aos
dados pessoais como conduta anticompetitiva; 3. O abuso
de posição dominante amparado nos dados pessoais; 4.
Considerações Finais; Referências bibliográficas
196
RAFFOUL, Jacqueline Salmen. A potencial desarticulação entre a liberdade econômica e
privacidade digital em condutas anticompetitivas: estudos de casos sobre acesso a dados
pessoais dos consumidores em situações de abuso de posição dominante. Revista de Defesa
da Concorrência, Brasília, v. 13, n. 1, p. 194-208, 2025.
https://doi.org/10.52896/rdc.v13i1.1435
1 INTRODUÇÃO
Segundo Bacares (2015), a promulgação separada entre o Pacto Internacional dos Direitos
Civis e Políticos (PIDCP) e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC)
gerou dificuldades entre os interesses opostos relativos à pauta dos direitos humanos e do liberalismo
econômico. Para a autora, não é possível afirmar que há uma visão homogênea e coerente quanto
aos valores de mercado, as liberdades econômicas e os direitos humanos. Assim, os valores tutelados
nesses sistemas de proteção dos direitos humanos são diferentes e trazem ambiguidades concretas.
Para melhor visualizar o contraste, é relevante observar o objeto de cada área. A liberdade
econômica se relaciona à ideia de que o papel básico do Estado é a garantia da propriedade e do
cumprimento dos contratos, de modo que a sua medida está ligada à liberdade dos indivíduos em
participar voluntariamente de transações (Haan; Sturm, 2000). Por outro lado, no âmbito dos direitos
humanos, a liberdade econômica pode ser restringida quando atinge a intimidade e a vida privada
dos cidadãos, de modo que o uso dos dados pessoais dos consumidores por empresas seria restrito,
ainda que esteja amparada no direito contratual por meio dos termos e condições de uso.
Haveria, como reflexo atualmente, a necessidade de preservar o direito à privacidade no
ambiente digital, por meio da liberdade (Rigaux, 1990), do respeito à dignidade e à intimidade (Moya,
2019), bem como da proibição de intromissão alheia desautorizada na vida dos indivíduos. Portanto,
compreende-se a privacidade digital como o desdobramento do direito à privacidade no mundo
virtual, especialmente com a proteção dos dados pessoais dos indivíduos.
É relevante ponderar que a privacidade e a proteção de dados pessoais não são o mesmo,
embora complementares no ambiente digital (Fernandes, 2023). Pode-se afirmar que a proteção de
dados pessoais se refere a obrigações positivas, enquanto a privacidade a obrigações negativas
(Corte, 2020, p. 37). Instrumentos como a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) autorizam
o uso dos dados em determinadas circunstâncias e mediante a observância de certas condições.
Por exemplo, é possível que haja o tratamento de dados pessoais com o devido consentimento do
usuário. Por outro lado, a privacidade está geralmente ligada a uma obrigação negativa e engloba
aspectos que excedem os dados pessoais. Por exemplo, não se pode ler o conteúdo do e-mail de
terceiro, que pode abarcar questões de foro íntimo, sem que haja autorização para isso.
Nesse contexto, as situações concretas demonstram que podem ocorrer desarticulações
entre a liberdade econômica e o direito humano à privacidade, como o presente artigo abordará no
campo das condutas anticompetitivas concorrenciais. Com a economia digital, as divisões entre as
searas jurídicas persistem, mas a intersecção é cada vez mais observada nessa era digital.
Como exemplo, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) participou de
tratativas com a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), Ministério Público Federal (MPF)
e Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) sobre a alteração proposta na política de privacidade
do WhatsApp, que teria repercussões nas três áreas – concorrencial, proteção de dados pessoais
e consumerista. Em síntese, as autoridades manifestaram preocupação com o compartilhamento
de informações dos consumidores com empresas, como o Facebook e outros relevantes grupos
econômicos. Por isso, houve recomendação conjunta (PGR-00193357/2022) (MPF, 2022) desses órgãos
públicos para mitigar os efeitos concorrenciais negativos e resguardar os direitos dos consumidores,
titulares dos dados pessoais. O caso demonstra como os direitos envolvidos podem estar em conflito
e, ao mesmo tempo, interligados no meio digital.
197
Ao refletir sobre a desarticulação de interesses econômicos e de resguardo da intimidade dos
cidadãos em âmbito concorrencial, não se busca alterar a competência de análise do Cade. Portanto,
o presente artigo não defende que o enfoque do Cade deve ultrapassar as questões concorrenciais.
Entretanto, ao demonstrar o conflito de interesses, entende-se que os reflexos da atuação das autoridades
concorrenciais, restritas ao seu âmbito de competência, podem contribuir para resguardar aspectos da
privacidade, como consequência possível da proteção aos dados pessoais dos consumidores tutelada
por outras leis e por outros órgãos que deve ser respeitada inclusive pelo Cade.
Assim, parte-se de uma pressuposta desarticulação entre a liberdade econômica e o direito
humano à privacidade digital em condutas anticompetitivas relacionadas a dados pessoais de
consumidores, mas que não é absoluta ou permanente, sendo fundamental observar o caso concreto
para ser solucionada.
Em especial, neste artigo, o conflito de interesses econômicos e de privacidade digital dos
consumidores é analisado em situações em que há conduta anticompetitiva
3
. Para a solução concreta
do referido conflito de interesses, é preciso primeiramente observar que existem plataformas que
possuem quantidades significativas de dados, porém as violações concorrenciais não representam
ameaças à privacidade dos consumidores. Tais casos são especialmente discutidos no âmbito da
colusão algorítmica
4_5
, por exemplo. O foco, de um modo geral, está no preço praticado pelas empresas
concorrentes e o papel dos dados dos consumidores não aparece de forma objetiva.
Do ponto de vista metodológico, foram selecionados dois tipos legais que objetificam
condutas anticompetitivas que demonstram a aparente desarticulação entre a liberdade econômica
e o direito humano à privacidade digital, listadas a seguir: (i) a imposição de barreiras relacionadas
à utilização de dados pessoais por novas empresas digitais e; (ii) o abuso de posição dominante
amparado nos dados pessoais, em que as empresas já consolidadas e com expressivo poder de
mercado utilizam-se de dados pessoais para impor condições abusivas a concorrentes.
As condutas serão abordadas em dois tópicos distintos. No primeiro, sobre os dados
pessoais como conduta anticompetitiva, busca-se abordar como podem representar barreiras no
contexto concorrencial, ainda que haja o amparo na LGPD para justificar determinadas medidas
entre empresas concorrentes. No segundo, sobre o abuso de posição dominante, será exposta a
relação com o acúmulo de dados. Ambos não são ilícitos concorrenciais de forma isolada, mas podem
configurar infrações em determinados casos, especialmente ligados à inobservância da privacidade
digital dos consumidores.
3 Para melhor compreensão, o Cade (2016a, p. 11) considera que uma conduta anticompetitiva pode ser “qualquer
prática adotada por um agente econômico que possa, ainda que potencialmente, causar danos à livre concorrência, mesmo
que o infrator não tenha tido a intenção de prejudicar o mercado. No contexto da proteção de dados pessoais, as condutas
anticompetitivas serão abordadas de forma exemplificativa ou não exaustiva. Sabe-se que existem outras além das listadas
neste artigo, porém a intenção é apenas ilustrar a desarticulação entre a privacidade digital e a liberdade econômica.
4 Na nota técnica nº 27/2015/CGAA6/SGA2/SG/CADE do Processo Administrativo nº 08012.001286/2012-65, o Cade
define colusão como “qualquer forma de coordenação ou acordo entre concorrentes para aumentar preços ou reduzir a quan-
tidade ofertada de produtos, de modo a obter lucros mais elevados. A colusão pode ser tácita ou expressa, mediante a coor-
denação direta entre os concorrentes. Para a doutrina, existem três condições para que ocorra a colusão: (i) uma política em
comum entre os concorrentes; (ii) uma forma de monitoramento da política em comum e; (iii) retaliações ou punições para
eventual violação da referida política (Carugati, 2020). No ambiente digital concorrencial, o acesso a dados pessoais permite a
identificação dos hábitos de consumo e padrões de comportamentos dos consumidores, o que pode aumentar a personaliza-
ção de preços e a colusão por algoritmos (Gata, 2021). No estudo Algorithms and Collusion, a OCDE explica que algoritmos são
uma sequência de regras que podem ser executadas exatamente da mesma forma para uma determinada tarefa (OECD, 2017).
5 Todos os processos públicos do Cade mencionados neste artigo podem ser consultados em: https://x.gd/LCxGO.
198
RAFFOUL, Jacqueline Salmen. A potencial desarticulação entre a liberdade econômica e
privacidade digital em condutas anticompetitivas: estudos de casos sobre acesso a dados
pessoais dos consumidores em situações de abuso de posição dominante. Revista de Defesa
da Concorrência, Brasília, v. 13, n. 1, p. 194-208, 2025.
https://doi.org/10.52896/rdc.v13i1.1435
Espera-se que o presente artigo contribua para demonstrar como a atuação do Cade é
relevante para incentivar a livre e lícita concorrência no ambiente digital, em situações relacionadas
ao uso de dados pessoais de consumidores. Simultaneamente, ao apontar a desarticulação entre
direitos civis e econômicos, este artigo considera que exista compatibilidade entre os normativos
jurídicos em questão. A ideia é justamente a complementariedade, que deve ser alcançada por meio
da interpretação para a observância do bem-estar do consumidor, objeto de análise também do
direito da concorrência.
2 AS BARREIRAS RELACIONADAS AOS DADOS PESSOAIS COMO CONDUTA
ANTICOMPETITIVA
As barreiras à entrada são definidas pelo Cade (2016b, p. 27) como “qualquer fator em um
mercado que coloque um potencial competidor em desvantagem com relação aos agentes econômicos
estabelecidos”. Ainda que a definição do Cade seja mais abrangente, a doutrina possui conceitos de
escopos variados. Segundo Bain (1956), as barreiras à entrada teriam efeitos diferentes para novas e
estabelecidas empresas. Para as novas, representariam a dificuldade de entrar no mercado. Com isso, as
empresas estabelecidas teriam mais lucro em suas atividades. Já para Stigler (1983), as barreiras seriam
custos para a entrada em determinado mercado, que seriam arcados apenas pelas novas empresas.
Ao aplicar o entendimento do Cade (2016b) sobre as barreiras à entrada, nota-se que o
conceito é amplo abarcando “qualquer fator” limitante de acesso ao mercado, por exemplo, a falta
de acesso aos dados pessoais dos consumidores, devido à existência de controle quanto a tais dados
(Khan, 2017). Pelo potencial dano à concorrência, as barreiras à entrada podem ser consideradas
práticas anticompetitivas, ainda que inexista a intenção em prejudicar o mercado. No entanto, ainda
que seja possível notar a inter-relação entre os dados pessoais e o direito da concorrência, cite-se
que dessa conduta nem sempre existirão violações ou riscos à privacidade dos consumidores.
Para ilustrar, o procedimento nº 08700.004201/2018-38, envolvendo uma instituição
financeira (IF) e uma fintech, pode ilustrar o aspecto prático dos conceitos teóricos. A desarticulação
se verifica por meio da suposta proteção aos dados pessoais dos consumidores da IF, que desejavam
compartilhar seus dados com a fintech, mas não conseguiam por imposições de segurança. O
caso ilustra como a liberdade individual, ligada à privacidade, não foi observada. A repercussão
no contexto concorrencial expõe a dificuldade do exercício da atividade econômica pela fintech e,
simultaneamente, do interesse individual do consumidor que desejava compartilhar os seus dados
(Costa-Cabral, 2017).
Em 2018, a Superintendência-Geral (SG) do Cade instaurou Inquérito Administrativo em face
da IF por supostas infrações cometidas em desfavor da fintech
6
. Ao analisar o caso concreto, a SG
verificou que as informações dos consumidores da IF, ou os seus dados pessoais bancários, seriam
barreiras à competitividade da fintech. Por isso, a redução das barreiras geraria maior possibilidade
de escolha aos consumidores e mais efetividade de concorrência.
Ocorre que, no caso em apreço, não existia violação à privacidade dos consumidores, pois eles
gostariam de compartilhar os dados para utilizar o aplicativo; a autonomia quanto à disponibilização
dos dados pessoais estaria no escopo do direito civil, dentro das liberdades individuais, coerente
6 Nota técnica nº 17/2019/CGAA2/SGA1/SG/CADE do Inquérito Administrativo nº 08700.004201/2018-38.
199
com a liberdade econômica e com a autodeterminação para a tomada de decisão (Frazão, 2019). Não
houve questionamento da finalidade dos dados, pois o que havia era a dificuldade imposta pela
IF, por razões de segurança, para que os dados fossem, de fato, compartilhados com a fintech. Tais
razões repercutem na esfera econômica, demonstrando a desarticulação entre as áreas.
Assim, a percepção do Cade se deu em razão da necessidade de acesso aos dados bancários
por meio da fintech, que se trata de plataforma de dois lados ou bilateral, tendo em vista que dois
grupos distintos poderiam interagir. O aplicativo realizava a classificação de risco dos usuários,
baseada em movimentações financeiras, bem como permitia a oferta de serviços de créditos de
instituições financeiras aos consumidores da fintech. Assim, os consumidores poderiam comparar as
ofertas recebidas e optar pelo mais conveniente.
Para realizar as atividades propostas, a fintech necessitava do consentimento dos
consumidores para ter acesso às suas informações bancárias de outras instituições financeiras.
No entanto, a IF exigia a autenticação de dois fatores, que consistia na imposição de uma senha
aleatória, gerada por token, para o acesso ao internet banking, e o envio de autorizações individuais
dos titulares à IF para que fosse “liberado” o acesso de terceiros sobre as informações bancárias.
A IF justificava a imposição da autenticação de dois fatores como avanço tecnológico e
segurança da informação. No entanto, o Cade verificou que a fintech, que buscava o acesso aos
dados, representava um negócio para utilizar a tecnologia para melhorar serviços financeiros. Assim,
a justificativa da IF iria de encontro à melhoria nos serviços tecnológicos, pois, conforme a situação
concreta, inviabilizaria a atuação da fintech.
Antigamente, os serviços financeiros se concentravam apenas nos grandes bancos, porém
as fintechs passaram a fragmentar a indústria financeira com formas convenientes de ofertar tais
serviços aos consumidores, o que poderia influenciar o comportamento de instituições financeiras.
O Cade, na referida Nota Técnica
7
pontuou que, justamente por ser uma fintech, era comum a
dependência de informações bancárias para a prestação e o desenvolvimento de serviços adequados
aos consumidores.
O aparente cuidado com a segurança e a privacidade dos consumidores, marcado pela
autenticação de dois fatores, representou para o Cade uma barreira à entrada. Nota-se que a finalidade
do compartilhamento era legítima e nunca foi questionada pelas autoridades. Contudo, a suposta
forma de proteger os consumidores, na verdade, dificultava o aumento da competição com novas
empresas no mercado que desejam receber os referidos dados pessoais de seus igualmente clientes.
Percebe-se a desarticulação pela inobservância da vontade dos consumidores, representada
na autonomia quanto aos seus dados pessoais. Ainda que buscassem compartilhar as suas próprias
informações pessoais, que a IF possuía com a fintech, eram impedidos supostamente por razões de
segurança. Portanto, quanto ao aspecto pessoal dos consumidores, não se verificou a plena liberdade
na tomada de decisão. De forma reflexa, a concorrência foi prejudicada, pois foi dificultada a entrada
de nova empresa devido à barreira imposta.
A Corte Interamericana de Direito Humanos (CIDH, 2010), ao considerar os aspectos da
privacidade dos consumidores no caso Fontevecchia y D’amico Vs. Argentina, reforça a posição do
Cade ao confirmar o papel da liberdade individual de tomar decisões, o que está intimamente ligado
7 Nota técnica nº 17/2019/CGAA2/SGA1/SG/CADE do Inquérito Administrativo nº 08700.004201/2018-38.
200
RAFFOUL, Jacqueline Salmen. A potencial desarticulação entre a liberdade econômica e
privacidade digital em condutas anticompetitivas: estudos de casos sobre acesso a dados
pessoais dos consumidores em situações de abuso de posição dominante. Revista de Defesa
da Concorrência, Brasília, v. 13, n. 1, p. 194-208, 2025.
https://doi.org/10.52896/rdc.v13i1.1435
à privacidade digital. O Estado tem o papel de se abster de atuar em certas situações para garantir
a privacidade, evitando ingerências arbitrárias. O citado julgado da CIDH, ainda que em esfera
de atuação independente e diversa, reforça a atuação do Cade, tendo em vista que confirmou a
autonomia dos consumidores quanto aos seus dados pessoais, prezando pela liberdade individual
no contexto digital.
Assim, ao analisar a materialidade da conduta, o Cade se posicionou no sentido de que a
prática da IF tinha dois efeitos: (i) dificultar a atuação da fintech e de outras instituições privadas no
mercado e; (ii) dissuadir potenciais entrantes no mercado pela dificuldade de obtenção de insumos
essenciais para o desenvolvimento de suas atividades.
As dificuldades que serviram como indícios da conduta anticompetitiva investigada foram
ainda mais notórias quando o Cade analisou o poder de mercado da fintech, referente ao mercado
alvo da prática, e da IF. O mercado da fintech foi considerado como “mercado nascente”, com inovação
célere a ponto de dificultar a sua delimitação. O Cade afirmou se tratar de “marketplace de produtos
financeiros, especificamente de organização de informações bancárias e oferta de crédito pessoal.
Nesse contexto, ao analisar o poder de mercado da IF, o Cade considerou como nacional
o mercado geográfico. Quanto ao produto, mencionou o market share em relação aos valores
depositados à vista e a quantidade de contas correntes abertas. No que concerne à participação
de mercado de depósitos à vista, observou que a IF era a terceira instituição financeira com maior
participação no setor bancário. E, quanto às contas correntes, verificou que a IF era a segunda
instituição financeira com maior participação no setor bancário.
Na ocasião, notou-se o substancial nível de concentração da IF, que viabilizaria práticas
anticompetitivas, e a existência de elevadas barreiras à entrada. Nesse contexto geral, o Cade
concluiu que a IF possuía posição dominante no mercado financeiro nacional e poderia prejudicar a
concorrência. Como desdobramento, o Cade e a IF celebraram Termo de Compromisso de Cessação
(TCC). A IF se comprometeu em cessar a prática de negar o compartilhamento das informações pessoais
de seus clientes, quando devidamente autorizado, e pagou aproximadamente R$ 23,8 milhões em
contribuição pecuniária.
A análise do caso citado pode ser ainda mais aprofundada à luz do estudo The Commercial
Use of Consumer Data (estudo), elaborado pela Competition & Market Authority (CMA) (CMA, 2015),
instituição responsável pela defesa da concorrência no Reino Unido, que apresentou o tema de forma
conjunta. O estudo compilou as conclusões de projeto da CMA de revisão factual, a respeito da coleta
e do uso dados dos consumidores.
A CMA (2015) verificou que uma possível barreira estratégica à expansão ou à entrada
consiste na permissão de que os dados pessoais dos consumidores sejam vendidos ou usados por
outros. Em contextos em que os dados pessoais são importantes para o processo de produção e sem
substitutos disponíveis, tais barreiras podem se constituir por meio da decisão de venda ou uso. Isso
foi observado pelo Cade
8
no modo como a IF passou a impor a autenticação de dois fatores, pois os
dados pessoais não poderiam ser substituídos, assim como apontado pela CMA.
Ainda nesse contexto, a CMA verificou que o padrão de armazenamento e compartilhamento
dos dados pessoais dos consumidores poderia constituir barreira à entrada e à expansão. Isso
8 Nota técnica nº 17/2019/CGAA2/SGA1/SG/CADE do Inquérito Administrativo nº 08700.004201/2018-38.
201
ocorreria pela possibilidade de alteração na interface do modo de fornecimento de dados ou da
alteração de algum formato. A consequência de tais mudanças seria o aumento de custos para
concorrentes menores. No caso da fintech, não houve a mensuração dos custos, mas certamente
haveria algum impacto. Tal conclusão se baseia, principalmente, na análise do Cade quanto ao poder
de mercado da IF em face da fintech.
Segundo a CMA (2015), as empresas que já estão estabelecidas podem se beneficiar do modo
como permitem o acesso aos dados pessoais por outras empresas. Considerando a relevância que
os dados pessoais possuem para a produção de bem ou oferta de serviço, tais empresas podem ter
vantagens por meio dos valores cobrados para o acesso aos dados, sendo necessário o consentimento
dos consumidores. No entanto, o consentimento pode nem sempre ser respeitado, como ocorreu no
precedente do Cade, representando um risco à autonomia quanto aos dados pessoais.
Outro meio de obter vantagem competitiva é a restrição em relação ao acesso aos dados
pessoais. Com a impossibilidade ou o acesso restrito de outros concorrentes quanto aos dados
pessoais coletados internamente, existem benefícios para as empresas estabelecidas no mercado
de dados. Ao observar que os consumidores da IF desejavam compartilhar os dados, tendo em vista
que havia o consentimento com a fintech, o desrespeito à vontade dos consumidores resultou em
vantagens competitivas à IF.
Considerando que apenas elas terão o acesso completo, poderão ofertar melhores produtos
e serviços do que outros concorrentes. No caso de mercados de dois lados, segundo a CMA (2015),
as barreiras se potencializam pela presença de empresas já estabelecidas e pela natureza dos
mercados. Justamente isso acontecia com a fintech, plataforma de dois lados, que funciona como
marketplace de serviços de empréstimo pessoal aos consumidores por meio de ofertas realizadas
por instituições financeiras.
No caso das pequenas empresas no mercado de dados, que buscam viabilizar que
consumidores tenham mais acesso aos seus dados pessoais, é particularmente desafiador não ter
acesso aos dados. Nota-se, em tal contexto, mais uma forma de barreiras à entrada e à expansão.
Essas barreiras também estão presentes para as empresas que atuam como intermediárias, como
ocorre com sites que realizam a comparação de preços, aplicando-se à fintech, que realizava a
comparação dos custos dos empréstimos de diferentes instituições financeiras aos consumidores.
Sem o devido acesso aos dados, as barreiras se fazem presentes
(CMA, 2015).
Observa-se que as barreiras diminuem ou inexistem em outros contextos. Por exemplo, não
ter acesso aos dados não se mostrou um problema para o marketing direto, conforme a pesquisa
realizada pela CMA (2015). Isso ocorre pela possibilidade de contornar a falta de acesso de outras
maneiras, como por meio da aquisição de dados de intermediários. Assim, essas empresas poderiam
compreender o perfil dos consumidores e atuar com o marketing direto.
Portanto, é necessário observar a situação concreta para verificar o que pode ou não ser uma
barreira à entrada. Da mesma forma, o caso prático poderá determinar se existe ou não a real relação
entre a privacidade dos consumidores, ainda que envolva dados pessoais. No caso do IF/fintech
9
,
o que se notou foi a ameaça à liberdade individual e à autonomia quanto aos dados pessoais dos
consumidores, o que se relaciona com a privacidade digital. Isso ocorria pelo poder de mercado da IF
9 Nota técnica nº 17/2019/CGAA2/SGA1/SG/CADE do Inquérito Administrativo nº 08700.004201/2018-38.
202
RAFFOUL, Jacqueline Salmen. A potencial desarticulação entre a liberdade econômica e
privacidade digital em condutas anticompetitivas: estudos de casos sobre acesso a dados
pessoais dos consumidores em situações de abuso de posição dominante. Revista de Defesa
da Concorrência, Brasília, v. 13, n. 1, p. 194-208, 2025.
https://doi.org/10.52896/rdc.v13i1.1435
e foi devidamente solucionado por meio da atuação do Cade, que cumpriu o papel regulatório e, de
forma indireta, resguardou aspectos relevantes da privacidade digital dos consumidores.
Observou-se, no caso concreto descrito, a relação entre o poder de mercado e a capacidade de
impor barreiras à entrada de competidores que ainda não são estabelecidos no mercado. Curiosamente,
os dados pessoais dos consumidores podem ser resguardados com excesso de proteção, além da
desejada pelos próprios consumidores. No caso em tela, o intuito era de compartilhar os dados
pessoais com a fintech, o que foi limitado pela IF. Assim, a liberdade individual, intrinsecamente
ligada à privacidade digital e à autonomia quanto aos dados pessoais, pode ser comprometida pelas
barreiras impostas em razão do poder de mercado. Desse modo, o presente item demonstrou como
a desarticulação de direitos civis e econômicos pode ocorrer, por meio de caso prático concorrencial.
3 O ABUSO DE POSIÇÃO DOMINANTE AMPARADO NOS DADOS PESSOAIS
A posição dominante de uma empresa no mercado não é, por si só, fator para configurar a
prática de conduta anticompetitiva, tendo em vista que se refere ao controle de parcela substancial
do mercado (Cade, 2016a). Segundo o art. 36 da Lei de Defesa da Concorrência (LDC), há a presunção de
posição dominante com o controle de 20% do mercado relevante em questão, com a possível alteração
do percentual pelo Cade em setores específicos. A consequência prática da posição dominante é a
possibilidade de que a empresa com tal poder altere as condições de mercado, de forma deliberada e
unilateral em prejuízo aos valores sociais juridicamente tutelados e com os efeitos citados no art. 36
da LDC (Cade, 2016a; Forgioni, 2016), ainda que inexista fator volitivo (Pereira Neto; Casagrande, 2016).
Do modo similar, o acúmulo de dados pessoais de consumidores não é ilícito, de forma
isolada. Por exemplo, os dados acumulados aperfeiçoam os mecanismos de pesquisa e podem gerar
inovação. No entanto, podem também representar ferramentas para o abuso de posição dominante
(Khan, 2017), sem a observância da legislação aplicável e da privacidade do consumidor.
Quando as empresas utilizam a posição dominante para prejudicar a concorrência, há
o exercício abusivo do poder de mercado (Martins; Santos, 2020) e a configuração de conduta
anticompetitiva (Cade, 2016a). Sem definição direta de conceito na LDC, a jurisprudência do Cade e de
outras jurisdições é relevante para compreender os aspectos levados em consideração para que se
configure a prática
(Martins; Santos, 2020), bem como estudos específicos sobre o abuso de posição
dominante no contexto de dados pessoais, como o Guia elaborado pela Japan Fair Trade Commission
(JFTC, 2019), que é a autoridade japonesa de direito da concorrência.
O estudo da JFTC (2019) explora como os dados pessoais podem contribuir para o abuso
de posição dominante e foi explorado em publicação do Cade sobre proteção de dados pessoais e
direito da concorrência (Raoul, 2021). Na publicação do Cade, foram citadas as seguintes situações
observadas pela JFTC no contexto da aquisição injustificável de dados pessoais: (i) a falta de informação
sobre a finalidade do uso dos dados pessoais aos consumidores; (ii) a aquisição dos dados pessoais
além do escopo de finalidade de uso; (iii) a ausência de cuidado no gerenciamento dos dados pessoais
adquiridos e; (iv) a indução aos consumidores para que forneçam mais informações.
Para ilustrar como o estudo da JFTC (2019) se aplica e se confirma a casos práticos, dois
precedentes podem ser utilizados para visualizar o abuso de posição dominante no contexto dos
dados pessoais: (i) o caso Facebook, na Alemanha e; (i) o caso iFood, no Brasil. Tais precedentes serão
203
avaliados conforme os critérios citados pela JFTC e com a finalidade de verificar a (in)existência de
violação à privacidade dos consumidores.
No primeiro caso, o Bundeskartellamt, autoridade alemã de defesa da concorrência,
considerou que o Facebook abusou da posição dominante por desrespeitar a proteção aos dados
pessoais dos consumidores por meio dos termos e condições de uso (Carugati, 2020). Neste caso, é
perceptível a relação entre os dados pessoais dos consumidores e o abuso de posição dominante,
com consequentes reflexos na privacidade.
Em 2016, o Bundeskartellamt iniciou a investigação com a finalidade de averiguar a potencial
violação ao abuso do poder de mercado do Facebook, com mais de 90% do mercado de social network
na Alemanha, por meio da violação da proteção dos dados pessoais
(Carugati, 2020). O caso reflete
a interligação entre concorrência, consumo e proteção de dados, tendo em vista que a investigação
avaliou se os consumidores estavam devidamente informados sobre o tipo e a quantidade de dados
coletados. Assim, em 2017, o Bundeskartellamt verificou que a coleta de dados de terceiros (third-
party) era abusiva (JFTC, 2019).
Como bem apontado no estudo da JFTC (2019), o caso Facebook apurou se os consumidores
eram, de fato, informados sobre a finalidade do uso de seus dados, pois se tratou de um dos itens
de investigação do Bundeskartellamt. No estudo da JFTC (2019), um dos exemplos apresentados foi
a coleta de dados relativos à navegação em websites sem a devida informação aos consumidores. O
critério da JFTC aplicado ao caso do Bundeskartellamt pode ser visualizado pela possível ausência
de informação dos consumidores sobre os dados de terceiros, que também desconheciam a coleta.
Visualiza-se, assim, outro fator elencado pelo JFTC (2019), referente à aquisição dos dados
pessoais além do escopo de finalidade de uso. Os consumidores que possuem contas no Facebook
concordam com os Termos de Uso para a utilização da plataforma. No entanto, a mesma concordância
não se verifica em pessoas que optaram por não abrirem ou manterem contas no Facebook. Portanto,
nota-se que houve a aquisição dos dados pessoais para além do escopo da finalidade de uso, em
consonância com o Guia da JFTC.
No caso em comento, o Facebook coletava dados dos consumidores em redes sociais distintas,
como o Instagram e o WhatsApp. Em seguida, os dados eram ligados ao Facebook
(Carugati, 2020). O
caso reforça a percepção que os consumidores não têm ciência de todos os dados que são coletados
e explorados ou mesmo para qual finalidade são destinados (Rochelandet, 2010).
Embora não houvesse proibição sobre a combinação de dados de aplicativos distintos, os
consumidores deveriam ter consentido para que isso ocorresse. Por isso, em 2019, o Facebook foi
proibido de continuar a combinar os dados das diferentes redes sociais
(Carugati, 2020). Portanto,
houve violação à privacidade dos consumidores, tendo em vista a ausência de consentimento de
compartilhamento de seus dados pessoais.
Nesse contexto, no caso Benedik v. Slovenia, a European Court of Human Rights (ECHR,
2018) abordou os aspectos da proteção dos dados pessoais e da privacidade no âmbito das
telecomunicações online. Dentre os fatores avaliados, a ECHR analisou a razoabilidade das
expectativas quanto à privacidade na esfera da internet. No caso em apreço, ainda que não existisse
a proibição de compartilhamento, seria razoável que os consumidores tivessem a expectativa que
as suas informações pessoais seriam compartilhadas apenas se houvesse o devido consentimento.
204
RAFFOUL, Jacqueline Salmen. A potencial desarticulação entre a liberdade econômica e
privacidade digital em condutas anticompetitivas: estudos de casos sobre acesso a dados
pessoais dos consumidores em situações de abuso de posição dominante. Revista de Defesa
da Concorrência, Brasília, v. 13, n. 1, p. 194-208, 2025.
https://doi.org/10.52896/rdc.v13i1.1435
A atuação do Bundeskartellamt confirmou que, por meio de termos e condições de uso injustos,
à luz dos instrumentos jurídicos de proteção de dados pessoais, teria ocorrido a violação à proteção de
dados pessoais, tendo em vista a impossibilidade de que os consumidores negociassem as cláusulas
(Carugati, 2020). Verificou-se que os dados pessoais eram essenciais para o domínio econômico do
Facebook e que a violação da proteção dos dados pessoais aumentava a sua posição dominante.
Consequentemente à violação dos instrumentos jurídicos de proteção dos dados pessoais,
o Facebook teria obtido mais volume e variedade de dados pessoais
(Carugati, 2020). O reflexo na
defesa da concorrência consistiu na violação das leis aplicáveis pelo aumento da posição dominante
por meio da violação da privacidade dos consumidores
(Carugati, 2020). Outro impacto concorrencial
consistiu na vantagem competitiva injusta pelo aumento de barreiras à entrada
(Carugati, 2020),
previamente estudadas, considerando que dificilmente novas empresas teriam a mesma condição de
concorrência por não terem acesso à mesma base de dados pessoais.
Depreende-se que os dados pessoais dos consumidores tinham ligação direta com o abuso
de posição dominante do Facebook, com possível reflexo na privacidade. Portanto, a atuação da
autoridade concorrencial pode ter refletido, ainda que indiretamente, na proteção do direito humano
à privacidade digital. Mesmo não sendo o objetivo do direito antitruste, a inibição de comportamentos
ligados a dados pessoais, como fontes de condutas anticompetitivas, pode resultar na proteção de
direitos humanos.
Em redes sociais como o Facebook, os consumidores compartilham os seus dados pessoais,
mas também aspectos de suas vidas íntimas. A depender do grau de exposição, é viável tornar pública
informações sobre estado civil, religião e relacionamentos, por exemplo. Quando as decisões são
tomadas de forma ciente das finalidades de uso, é presumido que a autonomia do consumidor foi
respeitada. No entanto, o desconhecimento equivale a uma zona cinzenta, onde os consumidores não
são capazes de enxergar o que realmente ocorre com os seus dados pessoais e informações privadas.
Apesar disso, cumpre notar que nem sempre a atuação antitruste refletirá, ainda que
indiretamente, na proteção da privacidade digital dos consumidores. Ainda que se trate de plataforma
digital, com significativo acesso aos dados pessoais dos consumidores, não há relação que, por si
só, reflita a privacidade digital. O caso que ilustra bem tal delimitação é o precedente analisado
pelo Cade que versa sobre acordos de exclusividade do iFood, Agência de Restaurantes Online S.A.,
que resultou na celebração de Termo de Compromisso de Cessação (TCC) sobre supostas infrações à
ordem econômica no âmbito de marketplaces de delivery online de comida (Termo [...], 2023).
O processo teve início com denúncia do Rappi Brasil Intermediações de Negócios Ltda.
(Rappi), plataforma semelhante e concorrente, que também prestava o serviço de pedido/entrega
de comida
.
10
Segundo o Rappi, o iFood abusaria da posição dominante de mercado com a imposição
de contratos de exclusividade aos restaurantes parceiros, que teriam tratamento diferenciado caso
aderissem a tais condições. Isso também representaria um meio de discriminação no tratamento de
restaurantes exclusivos. As consequências anticompetitivas seriam o fechamento de mercado para
os concorrentes e o incremento de barreiras à entrada com estipulações contratuais de longo prazo
e multas pela rescisão da exclusividade.
O Cade confirmou a existência de posição dominante, citando os dados apresentados pela
10 Nota Técnica nº 4/2021/CGAA1/SGA1/SG/CADE no Procedimento Preparatório nº 08700.004588/2020-47.
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Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), que também representou contra o iFood
perante o Cade em outro processo, indicando o percentual de 86% da participação de mercado do
iFood. Os dados apresentados pelo Rappi também foram considerados, porém não divulgados, por
terem sido considerados restritos. De qualquer modo, o Cade verificou que o percentual superava os
20% exigidos pela LDC.
O caso é relevante por reforçar a proximidade do direito da concorrência com os dados
pessoais de consumidores, porém sem demonstrar qualquer risco perceptível à privacidade digital.
Explica-se. O iFood é uma plataforma de múltiplos lados em um mercado digital. Apesar da ausência
de consenso sobre a definição de plataforma de múltiplos lados, sabe-se que os fornecedores são
frequentemente denominados “plataformas”, pois viabilizam a interação de usuários de diversos lados
(OECD, 2018). No caso do iFood, os consumidores do aplicativo podem interagir com os restaurantes
por meio do aplicativo e o contrário também se aplica.
Os efeitos concorrenciais são verificados por meio dos efeitos de rede. Se considerarmos
os consumidores como grupo “A, observaremos que a utilização da plataforma pelo grupo “B”, dos
restaurantes, se torna atrativa pelo potencial de usuários adeptos ao aplicativo. No caso do iFood, tal
percepção se confirma pela significativa participação de mercado, indicada em 86% pela Abrasel. Por
isso, a imposição de cláusulas de exclusividade era prejudicial à concorrência.
Cumpre notar que a caracterização de plataforma multilateral tem relação com os dados
pessoais dos consumidores, tendo em vista a presença de personalização dos serviços ofertados
e barreiras à entrada ligadas à economia de escala e escopo, como o controle da base de dados
11
.
Nesse cenário, existem efeitos de rede de produtos, com a dificuldade de coordenação da migração
em massa dos consumidores.
Verifica-se que existe a relação entre as características do iFood com os dados pessoais
dos consumidores, especialmente pela possibilidade de personalização dos serviços ofertados. No
entanto, não se identifica qualquer reflexo na privacidade dos consumidores, tendo em vista que
os dados pessoais não são utilizados para finalidades distintas do proposto. O que ocorreu foi que
a concentração dos dados pessoais no iFood garante vantagens concorrenciais, que viabilizou a
imposição de cláusulas de exclusividade, prejudicando a concorrência.
Desse modo, observa-se que o direito da concorrência pode ser um instrumento para
resguardar a privacidade dos consumidores, ainda que de forma indireta, como ocorreu no caso
Facebook. No entanto, isso nem sempre acontecerá, tendo em vista que pode ocorrer o abuso de
posição dominante relacionada aos dados pessoais, sem que a privacidade dos consumidores seja
ameaçada, como se verificou no caso iFood.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo abordou a desarticulação prática entre direitos civis e direitos econômicos,
especificamente quanto ao acesso à informação pessoal de consumidores por empresas. Para isso,
inicialmente explicaram-se as dificuldades decorrentes da promulgação separada do PIDCP e do
PIDESC, demonstrando diferentes enfoques entre interesses econômicos dos direitos humanos e o
liberalismo econômico.
11 Nota Técnica nº 4/2021/CGAA1/SGA1/SG/CADE no Procedimento Preparatório nº 08700.004588/2020-47.
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RAFFOUL, Jacqueline Salmen. A potencial desarticulação entre a liberdade econômica e
privacidade digital em condutas anticompetitivas: estudos de casos sobre acesso a dados
pessoais dos consumidores em situações de abuso de posição dominante. Revista de Defesa
da Concorrência, Brasília, v. 13, n. 1, p. 194-208, 2025.
https://doi.org/10.52896/rdc.v13i1.1435
No decorrer deste estudo, a questão foi delimitada no âmbito concorrencial, com a devida
ressalva que não se busca propor que o enfoque do Cade seja alterado para questões além do
antitruste. No entanto, no ambiente digital, nota-se a intersecção ente diversas áreas distintas, como
foi abordado quanto a proteção de dados pela LGPD, direito do consumidor e direito da concorrência.
Nesse contexto, o presente artigo demonstrou a existência de potenciais conflitos entre
direitos civis, delimitados na privacidade digital, como reflexo da personalidade, com os direitos
econômicos, na esfera concorrencial. Para isso, situações concretas envolvendo a imposição de
barreiras à entrada no mercado e o abuso de posição dominante, envolvendo o acesso aos dados
pessoais dos consumidores, foram apresentadas como condutas anticompetitivas aptas a ilustrar a
potencial desarticulação.
No caso das barreiras à entrada, houve a análise de caso do Cade, envolvendo uma IF e uma
fintech. Observou-se que o excesso de cuidado da IF, com os dados pessoais dos consumidores,
foi considerado uma forma de barreira à entrada da fintech, que dependia do compartilhamento
dos dados pessoais. Não foram observadas ameaças à privacidade dos consumidores, que tinham
interesse em compartilhar os seus dados, mas não conseguiam por questões de segurança. Apesar
disso, notou-se o reflexo na autonomia de vontade quanto aos dados pessoais, o que demonstra a
oposição com questões econômicas, de competição, apontadas pelo Cade. Para reforçar os pontos
apresentados, foi exposto estudo da CMA sobre a relação dos dados pessoais com as barreiras à
entrada, que se potencializam pela presença de empresas estabelecidas.
No tocante ao abuso de posição dominante amparado em dados pessoais, dois casos
concretos foram utilizados para ilustrar a desarticulação. As situações apresentadas demonstraram
que condições abusivas podem ocorrer, baseadas nos dados pessoais, no caso de empresas mais
consolidadas. No entanto, os casos concretos nem sempre demonstram a ligação dos dados pessoais
com a privacidade dos consumidores, embora possam ocorrer, como em situações envolvendo o
consentimento quanto ao compartilhamento de informações pessoais. Ainda assim, o posicionamento
das autoridades concorrenciais pode beneficiar o consumidor e, indiretamente, proteger os seus
dados pessoais e a sua privacidade, conforme a situação fática.
À vista das considerações realizadas, entende-se que a desarticulação não significa que os
direitos civis e econômicos sejam incompatíveis; trata-se de conflito meramente aparente, que deve
ser solucionado com razoabilidade e proporcionalidade no caso concreto, sendo certo que nenhum
desses direitos é absoluto. Para que haja o bem-estar do consumidor, é preciso que os direitos
aparentemente opostos, por interesses diversos, sejam harmonizados. Por meio dos incentivos das
autoridades concorrenciais, com medidas preventivas e repressivas, é possível resguardar direitos
econômicos, como foco imediato, e direitos civis, como consequências indiretas.
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