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RAFFOUL, Jacqueline Salmen. A potencial desarticulação entre a liberdade econômica e
privacidade digital em condutas anticompetitivas: estudos de casos sobre acesso a dados
pessoais dos consumidores em situações de abuso de posição dominante. Revista de Defesa
da Concorrência, Brasília, v. 13, n. 1, p. 194-208, 2025.
https://doi.org/10.52896/rdc.v13i1.1435
No decorrer deste estudo, a questão foi delimitada no âmbito concorrencial, com a devida
ressalva que não se busca propor que o enfoque do Cade seja alterado para questões além do
antitruste. No entanto, no ambiente digital, nota-se a intersecção ente diversas áreas distintas, como
foi abordado quanto a proteção de dados pela LGPD, direito do consumidor e direito da concorrência.
Nesse contexto, o presente artigo demonstrou a existência de potenciais conflitos entre
direitos civis, delimitados na privacidade digital, como reflexo da personalidade, com os direitos
econômicos, na esfera concorrencial. Para isso, situações concretas envolvendo a imposição de
barreiras à entrada no mercado e o abuso de posição dominante, envolvendo o acesso aos dados
pessoais dos consumidores, foram apresentadas como condutas anticompetitivas aptas a ilustrar a
potencial desarticulação.
No caso das barreiras à entrada, houve a análise de caso do Cade, envolvendo uma IF e uma
fintech. Observou-se que o excesso de cuidado da IF, com os dados pessoais dos consumidores,
foi considerado uma forma de barreira à entrada da fintech, que dependia do compartilhamento
dos dados pessoais. Não foram observadas ameaças à privacidade dos consumidores, que tinham
interesse em compartilhar os seus dados, mas não conseguiam por questões de segurança. Apesar
disso, notou-se o reflexo na autonomia de vontade quanto aos dados pessoais, o que demonstra a
oposição com questões econômicas, de competição, apontadas pelo Cade. Para reforçar os pontos
apresentados, foi exposto estudo da CMA sobre a relação dos dados pessoais com as barreiras à
entrada, que se potencializam pela presença de empresas estabelecidas.
No tocante ao abuso de posição dominante amparado em dados pessoais, dois casos
concretos foram utilizados para ilustrar a desarticulação. As situações apresentadas demonstraram
que condições abusivas podem ocorrer, baseadas nos dados pessoais, no caso de empresas mais
consolidadas. No entanto, os casos concretos nem sempre demonstram a ligação dos dados pessoais
com a privacidade dos consumidores, embora possam ocorrer, como em situações envolvendo o
consentimento quanto ao compartilhamento de informações pessoais. Ainda assim, o posicionamento
das autoridades concorrenciais pode beneficiar o consumidor e, indiretamente, proteger os seus
dados pessoais e a sua privacidade, conforme a situação fática.
À vista das considerações realizadas, entende-se que a desarticulação não significa que os
direitos civis e econômicos sejam incompatíveis; trata-se de conflito meramente aparente, que deve
ser solucionado com razoabilidade e proporcionalidade no caso concreto, sendo certo que nenhum
desses direitos é absoluto. Para que haja o bem-estar do consumidor, é preciso que os direitos
aparentemente opostos, por interesses diversos, sejam harmonizados. Por meio dos incentivos das
autoridades concorrenciais, com medidas preventivas e repressivas, é possível resguardar direitos
econômicos, como foco imediato, e direitos civis, como consequências indiretas.
REFERÊNCIAS
BACARES, Diana Carolina Olarte. L’articulation du droit international des investissements et des droits
de l’homme: le cas de l’Amérique latine. Orientador: Hervé Ascensio. 2015. Tese (Doutorado em Direito
Internacional) – Faculdade de Direito de Sorbonne, Universidade de Sorbonne, Paris, 2015. Disponível
em: https://x.gd/vozrJ. Acesso em: 4 fev. 2024.
BAIN, Joe. S. Barriers to New Competition. Cambridge: Harvard University Press, 1956.