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DIREITO, ECONOMIA E
LINGUAGEM: HERMENÊUTICA,
DIREITO ADMINISTRATIVO
SANCIONADOR E O
“IMPASSE” EM TORNO DA
APLICAÇÃO DO CONCEITO DE
“VANTAGEM AUFERIDA”
1
Law, economics, and language: hermeneutics,
administrative sanctioning law, and the
‘impasses’ surrounding the application of the
concept of “advantage gained”
Diogo Thomson de Andrade
2
Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) – Brasília/DF, Brasil
Paulo Henrique de Oliveira
3
Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) – Brasília/DF, Brasil
1 Editor responsável: Prof. Dr. Victor Oliveira Fernandes, Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), Brasília/
DF, Brasil. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5250274768971874. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5431-4142.
Recebido em: 29/10/2024 Aceito em: 19/11/2024 Publicado em: 11/12/2024
2 Possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2003). Mestre em Filosofia do Direito
pela PUC/SP (2009). Doutorando em Direito pelo Instituto Brasiliense de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa IDP. É Procurador
Federal (membro da Advocacia-Geral da União), desde 2004. Ocupa o cargo de Conselheiro no Tribunal do Cade desde
dezembro/2023. Foi Superintendente-Adjunto do Cade (2012-2023) e Superintendente-Geral Interino (julho/2021 a abril/2022 e
julho a outubro/2017). Anteriormente, ocupou o cargo de Diretor do Departamento de Proteção e Defesa Econômica (DPDE) na
extinta Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça (2011-2012) e de Procurador Federal, chefe do Setor de Estudos
e Pareceres (consultivo) da Procuradoria Federal Especializada do Cade (2007-2010).
E-mail: diogo.andrade@cade.gov.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1013455166196943
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2850-4150
3 Economista pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Mestre em Política e Economia do Setor Público
(Administração Pública e Governo) pela FGV-EAESP e Doutorando pela mesma instituição. Pesquisador colaborador do Centro
de Direito e Democracia do CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e Chefe de Gabinete do Conselheiro Diogo
Thomson de Andrade no Cade.
E-mail: oliveira.paulo@fgv.edu.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7317015365816360
ORCID: https://orcid.org/0009-0002-9976-8695
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ANDRADE, Diogo Thomson de; OLIVEIRA, Paulo Henrique de. Direito, economia e linguagem:
hermenêutica, direito administrativo sancionador e o “impasse” em torno da aplicação do
conceito de “vantagem auferida”. Revista de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 12, n. 2, p. 149-
173, 2024.
https://doi.org/10.52896/rdc.v12i2.1890
RESUMO ESTRUTURADO
Contexto: o presente artigo está inserido na interseção entre o direito constitucional e o direito
administrativo sancionador, especificamente voltado para a aplicação de sanções pelo Cade em casos
de condutas anticompetitivas. Ele se fundamenta na hermenêutica filosófica e jurídica de Hans-Georg
Gadamer e na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann para examinar como interpretações jurídicas
podem afetar a objetividade na aplicação de penalidades administrativas.
Objetivo: analisar a interpretação constitucional das normas relacionadas ao poder punitivo do
Estado, com ênfase nas sanções administrativas aplicadas pelo Cade e, particularmente, na aplicação
do conceito de ‘vantagem auferida’. O artigo visa identificar como diferentes interpretações dessas
normas podem resultar em decisões punitivas heterodoxas e, além disso, propor soluções para
o impasse na dosimetria e aplicação de penalidades pecuniárias a pessoas jurídicas. Para atingir
esses objetivos, o artigo foca em aspectos específicos da hermenêutica, como a análise de conceitos
jurídicos indeterminados e a interação entre as esferas do direito e da economia na aplicação das
normas sancionadoras. A pesquisa também inclui uma análise crítica da objetividade e segurança
jurídica na dosimetria das sanções, com foco na metodologia aplicada pelo Cade.
Método: para este fim, utiliza-se uma abordagem teórico-interpretativa, com base na hermenêutica
filosófica de Gadamer e na teoria dos sistemas de Luhmann. Ele aplica essas teorias para investigar a
prática sancionadora do Cade e suas implicações constitucionais.
Conclusões: propomos uma abordagem hermenêutica jurídica que vê o direito como um sistema
autopoiético, onde a Constituição atua como elo estrutural. Isso oferece uma forma equilibrada de
abordar questões no direito concorrencial, especialmente diante do “impasse” na jurisprudência do
Cade sobre multas. A interpretação sugerida busca conciliar a função dissuasória das penalidades
com o respeito aos princípios constitucionais, evitando tanto o formalismo rígido quanto a abertura
excessiva. Embora melhorias legislativas possam objetivar o cálculo das multas, o artigo enfatiza que
o sistema atual já permite avanços em uma jurisprudência mais coesa, transparente e respeitosa dos
direitos fundamentais.
Palavras-Chave: hermenêutica; direito administrativo sancionador; vantagem auferida; condutas
anticompetitivas; dosimetria das multas do Cade; defesa da concorrência.
STRUCTURED ABSTRACT
Context: this article is situated within the fields of constitutional and administrative sanctioning law,
with a specific focus on the application of sanctions by Cade for anticompetitive behavior. It draws on
Hans-Georg Gadamer’s hermeneutics and Niklas Luhmann’s systems theory to examine interpretative
challenges in Cade’s sanctioning practices.
Objective: to analyze the constitutional interpretation of norms related to the State’s punitive power,
with an emphasis on administrative sanctions applied by Cade and, in particular, on the application
of the concept of “advantage gained”. The article aims to identify how dierent interpretations of
these norms can lead to heterodox punitive decisions and, additionally, to propose solutions for
the impasse in the dosimetry and application of pecuniary penalties to legal entities. To achieve
151
these objectives, the article focuses on specific aspects of hermeneutics, such as the analysis of
indeterminate legal concepts and the interaction between the realms of law and economics in the
application of sanctioning norms. The research also includes a critical analysis of objectivity and legal
certainty in the dosimetry of sanctions, with a focus on the methodology applied by Cade.
Method: for this purpose, a theoretical-interpretative approach is used, based on Gadamer’s
philosophical hermeneutics and Luhmann’s systems theory. These theories are applied to investigate
Cade’s sanctioning practice and its constitutional implications.
Conclusions: we propose a legal hermeneutic approach that views law as an autopoietic system, with
the Constitution serving as a structural link. This approach oers a balanced way to address issues
in competition law, particularly in light of the “impasse” in Cade’s jurisprudence regarding fines.
The suggested interpretation aims to reconcile the deterrent function of penalties with respect for
constitutional principles, avoiding both rigid formalism and excessive openness. Although legislative
improvements could make fine calculation more objective, the article emphasizes that the current system
already allows for progress toward a more cohesive, transparent, and rights-respecting jurisprudence.
Keywords: hermeneutics; administrative sanctioning law; advantaged gained; anticompetitive
conducts; dosimetry of Cade’s fines; competition policy.
Classificação JEL: K21; K23; K40; D73; Z13.
Sumário: 1. Introdução; 2. Pressupostos hermenêuticos; 3. A unicidade do
direito de punir do estado na Constituição Federal de 1988; 4. A ordem
econômica na Constituição, a defesa da concorrência, a Lei no 12.529/11 e
o papel sancionador do Cade – economia, política e direito; 5. O “impasse”
jurisprudencial do Cade na aplicação de sanções pecuniárias a infrações
contra a ordem econômica; 6. Possíveis soluções hermenêuticas para o
“impasse” e a reconciliação entre os sistemas jurídico e econômico (ou entre
o direito administrativo sancionador e a análise econômica do direito); 7.
Considerações finais; Referências.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo procura abordar com base na hermenêutica filosófica e jurídico-
constitucional três temas, sem a pretensão de esgotar nenhum deles e nem de se ater, de maneira
mais aprofundada, no tratamento dogmático destes, mas percorrendo, por vias hermenêuticas, um
caminho que nos leva desde um debate eminentemente teórico até a tentativa de resolução e de
proposição de soluções para questões extremamente práticas e microssistêmicas.
Neste sentido, procuramos analisar como se revela, na Constituição de 1988, a unidade
do ius puniendi estatal e sua subdivisão entre direito penal e direito administrativo sancionador.
Em seguida, busca-se demonstrar como esta unidade é implicada na hermenêutica específica do
direito sancionador e, ainda mais especificamente, no direito sancionador em matéria de defesa
da concorrência. Por fim, apresentamos um problema específico desse subsistema do direito da
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conceito de “vantagem auferida”. Revista de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 12, n. 2, p. 149-
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concorrência, qual seja, a interpretação das normas que determinam sanção e sua dosimetria pelo
órgão responsável por interpretar e aplicar a legislação concorrencial, procurando analisar, com
base nas reflexões anteriores e nos critérios hermenêuticos aqui adotados, como esse problema
pode ser solucionado – ou resolvido – de forma a melhor atender ao mandato constitucional dado à
autoridade de defesa da concorrência para sancionar.
Entre os principais impasses enfrentados pelo Cade estão as divergências na interpretação
da base de cálculo das multas e do conceito de “vantagem auferida”. Por exemplo, em casos recentes
envolvendo a análise de carteis, nota-se o surgimento de diferentes entendimentos em relação à
base de cálculo e se esta deveria incluir todo o faturamento da empresa ou apenas o faturamento
relacionado ao mercado afetado. Em alguns julgamentos, a aplicação estrita da base de cálculo levou
a multas consideradas insuficientes para dissuasão, enquanto em outros, pode-se entender que uma
interpretação demasiado ampla gerou penalidades relativamente desproporcionais. Tais divergências
têm impactado a segurança jurídica e ressaltam a necessidade de uma abordagem hermenêutica que
possa fornecer maior estabilidade interpretativa.
Assim, antes de adentrar diretamente no objeto do ensaio, procuraremos estabelecer
os pressupostos hermenêuticos (filosóficos e jurídicos) de que partimos, para depois tratar
especificamente do direito de punir na Constituição Federal de 1988, da sede constitucional da defesa
da concorrência, do Cade e de seu poder sancionador e, por fim, do “impasse” jurisprudencial do Cade
acerca das sanções, notadamente pecuniárias, e de sua dosimetria, oferecendo possíveis soluções
para tal “impasse” por meio da hermenêutica. Para isso, são utilizadas as bases teóricas de diversos
autores, com especial destaque para os mecanismos lógicos desenvolvidos por Hans-Georg Gadamer,
Friedrich Müller e Niklas Luhmann.
Da aplicação de tais conceitos à interpretação das sanções administrativas do Cade – e
considerando as limitações gerais de uma análise teórica e, ainda que baseada em exemplos
práticos, não focada na especificidade de cada caso particular –, o artigo busca demonstrar como a
hermenêutica jurídica permite uma análise contínua e crítica das normas sancionadoras, integrando
pré-compreensões oriundas tanto da esfera jurídica quanto da econômica. Esse ciclo hermenêutico
é especialmente útil na interpretação de conceitos jurídicos indeterminados, como o de “vantagem
auferida”, pois exige que o intérprete avalie as sanções em um contexto atualizado, de acordo com
as necessidades e os impactos no mercado. Dessa forma, a hermenêutica de Gadamer não só orienta
uma interpretação crítica, mas também fornece uma estrutura para que as normas do Cade sejam
aplicadas de maneira contextual e dinâmica.
Finalmente, por rigor terminológico e científico e, ainda de forma preambular, cumpre
explicar que o uso entre aspas da palavra impasse para o problema estudado se justifica porque,
na prática, o debate hermenêutico acerca das sanções não tem impedido o Cade de aplicar e
determinar tais sanções, pelo contrário. Porém, a dificuldade de construção de um consenso (ou ao
menos de neutralizar objetivamente o dissenso) e a procura de um “único” método correto derivado
diretamente da norma que determina a sanção tem acabado por isolar duas posições interpretativas
aparentemente antagônicas e que, diante do sistema jurídico podem, ao longo do tempo, fazer com
que tais sanções se tornem não efetivas, por disfuncionais. Assim, urge também demonstrar com
base na hermenêutica que estas duas posições não são necessariamente irreconciliáveis e que, em
verdade, é (ou deveria ser) papel da própria autoridade buscar esta solução conciliadora de forma a
153
exercer de maneira mais conforme o mandato constitucional que lhe foi concedido e o seu papel na
realização do programa constitucional dedicado à ordem econômica.
2 PRESSUPOSTOS HERMENÊUTICOS
Como afirmado ao introduzir o presente artigo, o desenvolvimento da argumentação aqui
exposta procurará fundamentar-se em bases hermenêuticas, filiando-se tanto a bases teóricas e
ideias de expoentes da hermenêutica filosófica como também a lições de hermenêutica jurídica,
de sociologia jurídica e de concepções descritivas do sistema jurídico. Nessa linha, é necessário
expor primeiramente tais bases teóricas para esclarecer e dar sentido a determinadas afirmações e
conceitos que serão utilizados.
O ponto de partida da hermenêutica jurídica aqui adotada surge com a hermenêutica
filosófica de Hans-Georg Gadamer (2003), encetado, por sua vez, numa tradição hermenêutica
iniciada por autores como Schleichemacher (2010), Dilthey (2010) e, principalmente, nas concepções
hermenêuticas, ainda que incipientes ou circunstanciais, presentes na fenomenologia existencial de
Heidegger (2015). Gadamer é responsável por estabelecer a hermenêutica como disciplina filosófica
autônoma, reconstruindo a ideia de círculo hermenêutico e estabelecendo que o processo de
interpretação é composto de pré-compreensões, tradição, tradução e compreensão. Para o autor,
é importante que a tarefa de interpretação se caracterize objetivamente, isto é, que se adote uma
postura crítica às pré-compreensões e subjetividades e que se tenha a distância temporal necessária
ao que está sendo interpretado para poder aplicar a interpretação ao tempo presente, refazendo,
se necessário aquelas pré-compreensões. Além disso, deve o intérprete ter a consciência de sua
historicidade (sua condição de estar no mundo em um dado tempo e espaço, presente) e que a tarefa
interpretativa acaba sendo, sempre, uma mediação entre a historicidade do texto original e a do
momento de sua aplicação concreta (Gadamer, 2003, p. 39-47).
Gadamer (2003) não distingue, inicialmente, a compreensão da interpretação. Aquela é
parte do processo desta, um evento que ocorre diante da identidade do objeto e da mutabilidade de
situações de aplicação. A compreensão, pois, não seria o resultado da interpretação, como um ex post
facto, mas sim algo como uma aplicação concreta à situação presente (Gadamer, 2003, p. 174-273).
Neste sentido, a hermenêutica gadameriana é sempre crítica, no sentido de que pré-compreensões
podem (devem) ser revistas a cada novo insight (facticidade) e que a interpretação encerra sempre
uma tarefa de autocrítica (uma tentativa de eliminar a subjetividade do intérprete).
Nesse breve e superficial resumo da hermenêutica gadameriana, é possível perceber que
seu objeto principal são as diferentes formas de linguagem, como a arte, por exemplo, e, de maneira
específica, os textos, como os jurídicos ou religiosos. E é neste sentido que, em Gadamer (2003), surge
pela primeira vez de forma organizada a ideia de uma hermenêutica jurídica não como um conjunto
de técnicas de interpretação de textos legais, mas sim como parte de uma abordagem filosófica mais
abrangente. Ao utilizar o direito como objeto de sua filosofia, o autor estabelece a hermenêutica
jurídica a que tomamos por base neste estudo. Os principais pontos que aqui importam, sem
novamente a pretensão de esgotar o pensamento do autor, são: (i) a negativa de que a interpretação
jurídica deva se dar segundo uma mera operação de subsunção; e (ii) o reconhecimento da lei
(direito) como vinculante para todos (inclusive o intérprete final – juiz) como condição necessária de
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conceito de “vantagem auferida”. Revista de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 12, n. 2, p. 149-
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existência para a hermenêutica jurídica (Gadamer, 2003, p. 400-449, 533-558).
Gadamer defende, assim, uma conexão entre a hermenêutica e a dogmática jurídica no papel
criativo do juiz, dado que este, em seu momento histórico deve trazer o texto para aplicação da
situação interpretativa em que se coloca. Para aplicar a lei deve-se conhecer, pois, não só o direito,
mas também o que determina sua aplicação e, mais do que isso, deve-se ter não apenas uma visão
fragmentária do texto legal, mas sim uma compreensão sobre o direito como um todo. Não basta,
para ele, buscar o sentido histórico de determinado texto para interpretá-lo conforme o sentido do
tempo de sua criação, mas sim realizar uma mediação que parte da compreensão do sentido original
para a necessidade de sentido a ser dada em cada caso concreto.
Da premissa fundamental de que tudo que pode ser compreendido é linguagem, assim é
também o texto jurídico, que é, ao mesmo tempo, base para a interpretação e o objeto que tem que ser
interpretado novamente a cada situação, com base nessa mediação entre as compreensões do sentido
original e atual daquilo que está disposto. Essa formulação hermenêutica permite suprir as imperfeições
da mera subsunção dogmática e, ao mesmo tempo, uma mutabilidade no tempo, dentro de certos
limites. É uma visão crítica do positivismo jurídico extremo, que se baseia única e exclusivamente na
lei, consubstanciando muitas vezes um textualismo fragmentado e carente de sentido.
Nessa linha crítica ao extremo textualismo do positivismo e seguindo a mesma tradição
de Gadamer (2003), utilizamos, também como base da hermenêutica jurídica de que aqui se trata,
a teoria estruturante de Friedrich Müller (2008)
4
. Müller introduz um importante instrumental
para a interpretação jurídica, sobretudo quando nos deparamos diante de lacunas ou conceito
indeterminados, os quais serão a chave para a compreensão do “impasse” na aplicação da lei
concorrencial a que o título desse artigo se refere.
Para o autor, o direito positivo se estrutura pelo texto normativo, mas também por aquilo
que chama de campo ou âmbito normativo, ou seja, pela ideia de um “programa” normativo. Nesse
contexto, o texto da norma é apenas a ponta do “iceberg”, um feixe inicial do sentido dessa própria
norma. A descoberta da norma passa pela busca de seu campo/âmbito normativo, isto é, dos aspectos
factuais do caso e dos aspectos relativos à sua produção e ao seu “encaixe” no direito como um todo.
Essa metódica estruturante se funda, em parte, na mesma ideia de que a interpretação pressupõe
uma compreensão do direito e uma série de pré-compreensões do intérprete, ambas devendo ser
mediadas segundo a situação concreta de interpretação, a qual está condicionada no tempo e na
história, bem como pelos fatos de cada situação concreta (Müller, 2008, p. 193-231).
4 Müller (2008) não é considerado um positivista jurídico no sentido tradicional, distanciando-se da tradição formalista
inaugurada por Kelsen (1998) e buscando superar a dicotomia entre positivismo e jusnaturalismo por meio da proposição de
uma visão que considera o direito não apenas como um conjunto de normas cuja validade se baseia em sua origem (como na
ideia de uma norma fundamental de Kelsen), mas como um processo complexo de construção de sentido. Nesse sentido, Müller
(2008) desenvolve sua teoria estruturalista com o objetivo de enfatizar que o direito não pode ser compreendido apenas como
um sistema de normas abstratas e estáticas, mas como uma estrutura que ganha sentido na prática, por meio da interpretação.
Müller (2008) argumenta que o direito é construído em um processo contínuo e não pode ser separado da realidade social
e dos valores que ele busca regular. Embora a crítica se direcione a um processo “neutro” de aplicação de normas gerais a
situações concretas como mero formalismo, a ideia do campo normativo não se distancia tanto da “moldura” da norma jurídica
proposta por Kelsen, dentro da qual existem diversas alternativas validades de aplicação da norma geral ao caso concreto. A
diferença principal está no fato de que, para Kelsen, essa operação deveria ser pura, sem qualquer interferência externa ao
Direito, enquanto para Müller, tal operação interpretativa necessariamente revela a historicidade e a realidade do contexto
social em que o intérprete está inserido.
155
Estabelecida a base da hermenêutica a que nos ocuparemos aqui para tentar oferecer soluções
e caminhos para o impasse do problema-título, faz-se necessário, também, deixar claras algumas
bases de compreensão do próprio direito que informam o presente estudo. Neste sentido, referimo-
nos de forma bastante explícita à descrição do direito e do seu funcionamento fornecida pela teoria
dos sistemas de Niklas Luhmann (2004)
5
. Essa teoria, aliás, também contribui sobremaneira para
uma construção hermenêutica do direito na medida em que procura descrever a tarefa do intérprete
jurídico diante da complexidade da sociedade contemporânea (Luhmann; Nasser, 2009, p. 78-205).
Novamente, não temos a pretensão de aprofundar-nos na teoria luhmanniana de maneira
a esgotar toda sua complexidade e sua forma de descrição do sistema jurídico, mas pretendemos
trazer alguns conceitos elaborados por ele para fundamentação da presente análise. Assim, tomando
como base a ideia de que a sociedade é um sistema de comunicações de diferentes tipos e cuja
complexidade exige a diferenciação funcional destas comunicações, o conceito mais relevante
apresentado por Luhmann (2004, p. 76-142) para a avaliação aqui desenvolvida é a da divisão da
sociedade em sistemas fechados operativamente, mas abertos cognitivamente.
Tais sistemas se prestam à função de reduzir a complexidade do ambiente, traduzindo essa
complexidade em códigos próprios de comunicação e produção/reprodução sistêmicas. Por meio
desta operação conforme a sociedade mais se complexifica mais se diferencia em sistemas autônomos,
capazes de reduzir essa complexidade em códigos binários próprios e atuar funcionalmente. Ao
mesmo tempo em que a diferenciação funcional faz com que se formem vários sistemas, é importante
lembrar que todo sistema é, ao mesmo tempo, sistema de si próprio e ambiente de outros sistemas
e que a evolução social se dá por meio de processos de irritações entre estes sistemas, sendo que
cada um deles tem uma maneira própria de selecionar essas irritações e reintroduzi-las internamente
segundo códigos particulares, adaptando-se às variações produzidas na linguagem própria de cada
sistema.
Extrapolando a abstração, é possível observar que, embora cada um dos diferentes sistemas
presentes na sociedade (como a política, a economia, o direito, entre outros) possua sua própria
funcionalidade e autonomia – sendo, nesse sentido, operacionalmente fechados –, esses sistemas
permanecem sempre abertos cognitivamente, permitindo mutações, trocas e adaptações mútuas.
Essa relação entre sistemas se dá por meio de acoplamentos estruturais, formas de comunicação
que possuem funções em mais de um sistema e que permitem, assim, uma ponte entre tais sistemas,
5 A teoria dos sistemas de Luhmann (2004) complementa a teoria de Müller (2008) que reforça o caráter de prática
social do direito, demonstrando como o direito opera funcionalmente como sistema social na sociedade e em relação a
outros sistemas. Também se distancia do positivismo formalista porque reconhece ao direito uma abertura cognitiva que
permite sua adaptabilidade ao longo do tempo por meio de acoplamentos estruturais e aquisições evolutivas. Paralelamente,
Luhmann difere de Müller por considerar que esse sistema, embora cognitivamente aberto, é operacionalmente fechado e
referenciado, aproximando-se nesse ponto do positivismo observado em Kelsen (1998). Nesse ponto, inclusive, considera
a interpretação e a argumentação jurídica como centrais à reprodução do sistema por meio de seus próprios códigos. Esta
visão, no entanto, permite uma complementariedade com as mais diversas teorias da interpretação jurídica, na medida em
que considera isso uma operação intrassistêmica. Nesse sentido, embora não considere que o direito precise de justificativa
ou legitimidade moral externa para exercer sua funcionalidade sistêmica, ao considerar a Constituição como acoplamento
estrutural e aquisição evolutiva de valores incorporados ao sistema mediante o código lícito/ilícito, a teoria de Luhmann
coexiste com as diversas teorias da interpretação clássicas, desde o positivismo kelseniano, como a teoria estruturante de
Müller ou ainda, teorias que enfatizam a prevalência dos direitos fundamentais e uma visão mais normativa do direito, como as
de Alexy (2015), que enfatiza a argumentação jurídica em direção a uma racionalidade prática que encontre a solução correta
mediante operação de ponderação e proporcionalidade baseada em princípios e direitos fundamentais e Dworkin (1999), que
enfatiza a necessidade de um encadeamento coerente de interpretações que integrem os princípios e regras em busca de uma
justificativa moral que os aproxime de valores democráticos e de justiça.
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conceito de “vantagem auferida”. Revista de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 12, n. 2, p. 149-
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o que estabelece uma coordenação horizontal entre eles e não uma subordinação. Neste sentido,
o direito, como um sistema autopoiético (isso é, que se reproduz segundo códigos próprios), tem
a função social de normatizar expectativas sociais. Por conseguinte, o direito relaciona-se com a
economia, a moral, a religião etc., mas principalmente e de forma bastante especial, se relaciona com
a política. A criação da lei parte do sistema da política, mas de forma condicionada pelo direito. A
partir daí cabe ao direito, por meio de estruturas e códigos próprios, realizar o texto legal.
O direito tem, pois, um papel imunizante: aquilo que a opinião pública pressiona para que
a política partidária transforme em norma e que depois incumbirá a administração pública em
papel implementador – de um sistema de política – que somente poderá se realizar na forma e
pelos processos estabelecidos no sistema jurídico. Não obstante, caso se necessite interpretação
para aplicação, essa se dará com fundamentos e sob o código do direito, com base nas normas por
ele estabelecidas e, em última análise, pela Constituição. Esta, segundo Luhmann, é o acoplamento
estrutural entre os sistemas do direito e da política (Luhmann, 2004, p. 381-423). O sistema político
produz as normas conforme o procedimento estabelecido pela Constituição (tanto em método como
em conteúdo), enquanto o sistema jurídico irá aplicar as normas produzidas também em conformidade
com a Constituição.
Ainda em termos luhmannianos, a Constituição também é, enquanto fenômeno, uma aquisição
evolutiva (Luhmann, 1996). É quem traz ao direito – isto é, ao código lícito/ilícito – e à programação dele
decorrente os valores e a tradição insculpidos nos sistemas de comunicações que consubstanciam
a sociedade daquele determinado Estado. Nesse sentido, dando um exemplo que nos servirá mais
adiante, as normas relativas à ordem econômica na Constituição Federal de 1988 são a tradução, por
meio da política, para um documento jurídico, da correlação de comunicações e estruturas que o
sistema da economia vem produzindo e/ou necessita produzir segundo aquele momento histórico em
que a Constituição é criada. A partir do momento em que vira norma, no entanto, sua aplicação, ou seja,
a realização de seu programa normativo, é tarefa exclusivamente jurídica, ainda que, cognitivamente,
este processo seja constantemente irritado ou informado pelos sistemas da política e da economia (e
a depender do caso até outros, como a medicina, a educação etc.).
Feita essa digressão teórica necessária passaremos agora ao objeto principal do ensaio, qual
seja, a aplicação na prática, da hermenêutica jurídico-constitucional à questão da aplicação das sanções
à ordem econômica, notadamente a questão relativa ao cálculo das multas aplicadas pelo Cade.
3 A UNICIDADE DO DIREITO DE PUNIR DO ESTADO NA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL DE 1988
Um primeiro e importante passo para a abordagem desse estudo é reafirmar a interpretação
de que o direito de punir do estado consagrado na Constituição Federal de 1988 é uno, seguindo a
tradição constitucional iniciada com o pós-guerra. Tal unicidade diz respeito, primordialmente, à
sua legitimidade, isto é, dado que o monopólio da violência é estatal, o direito de punir, ou o poder-
dever de punir decorrente da detenção deste monopólio e de acordo com a Constituição, somente é
legítima a sanção decorrente do ius puniendi que venha, ao menos primariamente, do Estado.
Assim, tanto o direito de punir que resulta no direito criminal como o direito de punir
decorrente do poder de polícia estatal, ou melhor, aquele necessário ao desempenho efetivo da
157
atividade administrativa pública conforme o programa constitucional, tem, entre nós, a mesma fonte
constitucional. Como já resta claro da afirmação, ser uno não implica que este não possa (ou deva)
ser distribuído entre as funções judiciária, executiva e legislativa. Tampouco implica dizer que essa
distribuição seja uma mera replicação ou divisão de tarefas. Ao contrário, nessa distribuição se deve
garantir a independência entre as funções estatais e o funcionamento harmônico dessas funções,
não havendo comunicação automática entre as formas e o conteúdo de cada sistema sancionador
que somente têm razão de existir para proteção de determinados bens jurídicos essenciais ao
desempenho de cada uma das funções (poderes) estatais. O que a unicidade implica é dizer que
o direito sancionador parte de uma única fonte de legitimidade, constitucional, que é justamente
o monopólio da violência estatal. Assim, ainda que distribuído entre os poderes do estado, a
legitimidade da atividade sancionadora possui a mesma fonte, a Constituição, e, bem assim, tal
legitimidade somente se sustenta na forma condicionada constitucionalmente.
Nesse sentido, o constitucionalismo do pós-guerra, notadamente com a introdução da
concepção internacionalista dos direitos humanos nos ordenamentos jurídicos nacionais bem como
a introdução de verdadeiros projetos de estado de bem-estar via Constituição nos mais diferentes
estados, reforça essa necessidade de se distribuir também a atividade sancionadora do Estado nos
limites impostos pelos direitos e garantias fundamentais e pelos direitos sociais trazidos neste novo
paradigma. Assim, se é natural que no estado democrático do bem-estar social a função do executivo
seja expandida para que seja possível a realização do programa de desenvolvimento pretendido pelo
projeto constitucional, é também natural que esta expansão seja limitada pelos valores de direitos
humanos incorporados como direitos e garantias constitucionais.
Nessa esteira, se para que o executivo possa dar conta destas funções expandidas é
necessário também o desenvolvimento de uma lógica sancionadora própria – que lhe permita efetivar
seu poder de polícia –, também parece razoável que, assim como no direito penal, esta atividade
sancionadora, por ter a mesma origem e legitimidade, seja condicionada a direitos e garantias
fundamentais. Ato contínuo, no tocante à contenção e às fronteiras desta atividade sancionadora do
poder executivo, o constitucionalismo do pós-guerra o limita a um regime de controle pelos demais
poderes, notadamente e em última instância pelo Poder Judiciário (que normalmente responde
também pela aplicação da lei criminal), mas também pelo Poder Legislativo na medida em que esta
atividade sancionadora somente pode decorrer de expressa previsão legal, com estrita limitação à
discricionariedade administrativa para o exercício deste direito de punir.
Para além de qualquer discussão teórica a respeito, é fato que o nosso sistema jurídico, por
meio da Constituição de 1988, consagra esta unicidade do poder de punir e, ao mesmo tempo, sua
distribuição entre o direito criminal e administrativo. No art. 5º da Constituição Federal de 1988, que
trata dos direitos e garantias fundamentais, os vários incisos que trazem a garantia de legalidade
estrita, do devido processo legal e da inafastabilidade da jurisdição aplicam-se indistintamente às
instâncias administrativa e criminal. A interpretação destes direitos e garantias, conjugada com a
disciplina constitucional da administração pública no art. 37 da CF/88 e com a exigência de lei para o
estabelecimento de sistemas sancionadores específicos, como ocorre, por exemplo, no tema que nos
interessa – defesa da concorrência –, no art. 172, §4º, reforçam essa dualidade constitucional entre
a unicidade da legitimidade do poder sancionador como monopólio do Estado e a sua distribuição
entre as funções executiva e judiciária, sendo que este segundo, além de tudo, é instância revisora
do primeiro (Brasil, 1988).
158
ANDRADE, Diogo Thomson de; OLIVEIRA, Paulo Henrique de. Direito, economia e linguagem:
hermenêutica, direito administrativo sancionador e o “impasse” em torno da aplicação do
conceito de “vantagem auferida”. Revista de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 12, n. 2, p. 149-
173, 2024.
https://doi.org/10.52896/rdc.v12i2.1890
A título de exemplo, essa origem única e constitucional implica, em termos de hermenêutica
jurídica, não ser possível que na interpretação dos limites e contornos do direito administrativo
sancionador, deixe-se de utilizar como ponto de partida os princípios da atividade punitiva estatal
e as garantias fundamentais (individuais e procedimentais) determinadas pelo texto constitucional.
Isto, como veremos em uma situação concreta de aplicação do direito administrativo sancionador
mais à frente, faz com que a interpretação da própria norma sancionadora comporte um estrito
espaço de discricionariedade e a necessidade de adequação pelo intérprete da finalidade da sanção
a este espaço.
4 A ORDEM ECONÔMICA NA CONSTITUIÇÃO, A DEFESA DA CONCORRÊN-
CIA, A LEI N
O
12.529/11 E O PAPEL SANCIONADOR DO CADE – ECONOMIA,
POLÍTICA E DIREITO
O art. 170 da Constituição Federal de 1988 introduz a livre concorrência como um princípio
da ordem econômica, a qual é fundada na livre iniciativa e na valorização do trabalho e tem por fim
assegurar a todos vida digna conforme os ditames da justiça social. Já no art. 173, §4º a Constituição
estabelece que “a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados,
à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. No caput esse mesmo art. 173
consagra a intervenção do Estado no domínio econômico como excepcional (Brasil, 1988).
A partir do texto constitucional, de logo, temos que a livre concorrência é um princípio da
ordem econômica, ou seja, uma expectativa normativa relevante para que a finalidade da atividade
econômica, exercida sobre a livre iniciativa, seja atingida. Assim, para se garantir tal expectativa
normativa e, somente para isto, é que se admitirá a excepcional intervenção estatal, a qual será feita
na forma da lei, ou seja, do direito, que estabelecerá normas e procedimentos para reprimir ofensas
à concorrência.
Esta é a sede constitucional para o estabelecimento da legislação de defesa da concorrência,
a qual pós Constituição de 1988 foi primeiramente estabelecida na Lei n
o
8.884/94 e atualmente é
regida pela Lei n
o
12.529/11. Ambas as legislações tiveram inspiração nas mais maduras práticas e
legislações de defesa da concorrência ao redor do mundo, e ambas criaram um sistema de autoridades
de defesa da concorrência responsáveis por exercer o mandato constitucional – no todo ou em parte.
Assim, no sistema estabelecido pela Lei nº 8.884/94, o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência
(SBDC) era estruturado de forma tripartite, envolvendo três autoridades distintas: a Secretaria de
Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda (SEAE), a Secretaria de Direito Econômico do
Ministério da Justiça (SDE) e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Este último, embora
existente desde a década de 1960, passou a exercer um poder de polícia e um poder sancionador
efetivos apenas com o advento da referida lei. Com a promulgação da Lei nº 12.529/11, o sistema
foi centralizado, concentrando-se principalmente no Cade, enquanto a SEAE ficou com a função de
promover a concorrência, especialmente em relação a políticas governamentais e regulação.
Em linhas gerais e nos limites que interessam ao presente trabalho, cumpre-nos dizer que
ao Cade compete exercer o mandato constitucional acima descrito (“reprimir o abuso do poder
econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário
dos lucros”) enquanto autoridade administrativa máxima na aplicação administrativa da Lei n
o
159
12.529/11. As decisões do Cade são passíveis de revisão judicial, mas a Lei de Defesa da Concorrência
traz procedimentos administrativos de diversas espécies com elevado grau de contraditório e
participação das partes. Em sua atividade pode-se dizer que o Cade se organiza em dois grandes
eixos, com procedimentos específicos para cada qual.
Estes são: (i) um eixo considerado preventivo, em que exerce o poder de polícia e analisa os atos
de concentração econômica que atingem os parâmetros mínimos da lei para notificação obrigatória
ao Cade. Considera-se essa atividade preventiva pois nessa análise o Cade pode determinar restrições
ou até mesmo reprovar referidos atos de concentração econômica antes que sejam consumados,
caso vislumbre que deles decorrem efeitos anticompetitivos ou probabilidade de abuso de poder de
mercado. E (ii) um outro eixo de atuação repressiva, por meio do qual o Cade detecta, julga e pune
infrações à ordem econômica, ou seja, condutas praticadas pelos agentes econômicos no curso de
suas atividades econômicas. É, neste sentido, expressão do direito administrativo sancionador em sua
essência, exercido por meio de um devido processo e sob o contraditório. Em ambas as atividades,
para exercer seu papel, o Cade vale-se muitas vezes de conhecimentos da ciência econômica e
de entendimentos e especificações próprias a cada setor econômico analisado. A despeito dessa
interface com conhecimentos de economia e organização setoriais, não se pode esquecer – e isso é
especialmente relevante para o que aqui se discute – que se trata de uma atividade eminentemente
jurídica, de exercício, conforme a lei e a constituição, de poder de polícia e poder sancionador, como
previamente observado.
Verifica-se aqui, de forma bastante pronunciada, o fechamento operativo do sistema jurídico
e sua abertura cognitiva a outros sistemas, como também já mencionado. Para exercer, dentro do
código jurídico (lícito/ilícito), o mandato constitucional que lhe fora concedido, o Cade, ao interpretar
sua própria legislação de regência não pode se valer de mera subsunção, até porque muitos dos
conceitos apropriados à Lei são conceitos não jurídicos. É o típico caso em que é necessário que haja
uma compreensão da situação interpretativa para que se possa mediar o sentido do texto legal e
aplicá-lo de forma eminentemente jurídica.
Um bom exemplo dessa dinâmica da relação sistêmica entre economia-política-direito está
justamente na atividade repressiva do Cade. O tipo infracional, previsto no art. 36 da Lei n
o
12.529/11
é um tipo aberto, que pode ser simplificado na fórmula “qualquer ato que tenha por objeto prejudicar
a concorrência ou possa produzir efeitos anticompetitivos” (Brasil, 2011). Assim, dentro do espectro
normativo das infrações à ordem econômica incluem-se tanto atos que são ilícitos na origem, ou seja,
cujo objeto seja ilícito (como é o caso dos cartéis, que é um acordo ilegal entre concorrentes) como
atos que são lícitos a priori, mas que por terem sido cometido com abuso e por alguém que detenham
posição dominante no mercado (poder econômico) tornam-se ilícitos.
É claro que nesse amplo espectro infracional existem condutas mais frequentes e a própria
lei as exemplifica, mas a verdade é que o que caracteriza uma infração, ou seja, o que determina
algo como lícito/ilícito para os fins da defesa da concorrência, nada mais é que uma interpretação
jurídica de fatos econômicos e, por conseguinte, há necessária adequação dos sistemas cognitivos e
da linguagem da ciência econômica à lógica e hermenêutica jurídica. A base para esta interpretação
está obviamente no texto legislativo, mas sem o preenchimento dos conceitos legais por conceitos da
teoria econômica tais normas careceriam de sentido e, pois, de efetividade.
160
ANDRADE, Diogo Thomson de; OLIVEIRA, Paulo Henrique de. Direito, economia e linguagem:
hermenêutica, direito administrativo sancionador e o “impasse” em torno da aplicação do
conceito de “vantagem auferida”. Revista de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 12, n. 2, p. 149-
173, 2024.
https://doi.org/10.52896/rdc.v12i2.1890
Apenas para dar um exemplo, por mais que, na ciência econômica, a colusão entre
concorrentes seja claramente algo prejudicial à concorrência, fato é que na realidade econômica, onde
não existe a concorrência perfeita, é possível e até provável que este tipo de colusão seja formado.
O que torna essa colusão ilegal, no entanto, é a classificação dela como ilícita, isto é a consideração
de que acordos entre concorrentes que tenham por objeto variáveis competitivas são acordos cujo
objeto é proibido por lei. De modo sintético, a colusão é um fato no mundo econômico que a ciência
econômica considera como uma forma de concorrência imperfeita cuja ocorrência é quase sempre
prejudicial ou quase nunca capaz de gerar bem-estar na economia (realidade), por este motivo, o
sistema jurídico, traduzindo essa prejudicialidade e considerando que para atingir a finalidade de
proteção à concorrência deva-se sancionar este tipo de realidade econômica, considera a colusão
como um fato juridicamente relevante que constitui um ato (jurídico) ilícito e, portanto, punível.
Essa relação entre sistemas, qual seja, a tomada de decisão jurídica sobre um fato econômico
que justifica, afinal, que a legislação concorrencial brasileira, desde 1994, mas também a atual,
estabeleça que o Tribunal Administrativo do Cade será composto por sete conselheiros de reputação
ilibada e notável saber jurídico ou econômico. Entretanto, é justamente devido a essa relação sistêmica
que, quando a compreensão sobre a abertura cognitiva do direito em direção à economia, no âmbito da
defesa da concorrência, e a consequente incorporação de elementos econômicos pelo sistema jurídico
se perdem na interpretação dos julgadores, surgem impasses e disfunções na atuação do Cade.
Essa variação entre distintos sistemas de interpretação e linguagem, e as dificuldades de
adequação da função de decisão na interface entre diferentes modelos analíticos, ontologias e
heurísticas, ocorrem não apenas no âmbito dessas esferas durante o ato adjudicante, mas também ao
longo de um vetor temporal. Isso pode ser observado a partir de interpretações que oscilam devido
a mudanças na composição do tribunal e nas perspectivas adotadas, especialmente em relação ao
ponto crítico que permeia essa interface entre julgadores que atribuem maior ou menor relevância a
essas matizes cognitivas – saberes jurídico e econômico – e suas diferentes consequências políticas.
Assim, a variação no peso dado a esses conhecimentos influencia diretamente os resultados das
decisões, conforme a formação e a abordagem de cada julgador e o somatório dessas irritações na
composição de conjunto.
Por fim, ainda neste ponto, vale ressaltar uma peculiaridade da atividade repressiva do
Cade que não tem como ser negligenciada quando analisamos o direito administrativo sancionador
em matéria de defesa da concorrência. É o fato de o mesmo órgão que pune as infrações ser o
responsável pela promoção da defesa da concorrência e pela implementação da política de defesa
da concorrência. Defender a concorrência é, ao fim e ao cabo, promover mercados mais competitivos.
Neste sentido o caráter da punição do Cade não é meramente retributivo em virtude de um malfeito,
mas também necessário para reafirmar e disseminar a própria livre concorrência em si. Ou seja, entre
os objetivos da atividade repressiva do Cade está, em elevada prioridade, a capacidade do órgão de
dissuadir novas condutas anticompetitivas.
161
5 O “IMPASSE” JURISPRUDENCIAL DO CADE NA APLICAÇÃO DE SANÇÕES
PECUNIÁRIAS A INFRAÇÕES CONTRA A ORDEM ECONÔMICA
Considerado o arcabouço teórico previamente desenvolvido, passamos à demonstração
na prática de como esta relação entre sistemas no âmbito da defesa da concorrência pode levar
a “impasses” na aplicação da lei, “impasses” estes que decorrem muitas vezes da interpretação
de conceitos abertos presentes na Lei de Defesa da Concorrência quando do julgamento de casos
concretos. Essas dificuldades se agravam quando estamos diante da atividade repressiva do Cade,
ou seja, diante do direito administrativo sancionador e da necessidade de aplicação de sanções por
infrações, ou seja, de realização da tarefa dogmática de subsunção mais estrita, porém em um campo
hermenêutico amplo.
Para iniciar o debate vale transcrever aqui, in verbis, o dispositivo da Lei n
o
12.529/11 que
estabelece as sanções por infrações à ordem econômica:
Art. 37. A prática de infração da ordem econômica sujeita os responsáveis às seguintes
penas:
I - no caso de empresa, multa de 0,1% (um décimo por cento) a 20% (vinte por
cento) do valor do faturamento bruto da empresa, grupo ou conglomerado obtido,
no último exercício anterior à instauração do processo administrativo, no ramo
de atividade empresarial em que ocorreu a infração, a qual nunca será inferior à
vantagem auferida, quando for possível sua estimação; [...] (Brasil, 2011).
O dispositivo procura estabelecer as formas de sanções aplicáveis para todos os potenciais
sujeitos passivos dos processos administrativos nela previstos, mas vamos nos ater ao inciso I
que trata das sanções às pessoas jurídicas, que são o sujeito passivo por excelência da legislação
concorrencial. Mais do que isso, a multa das pessoas jurídicas é também a base para a multa das
pessoas físicas que possuem capacidade de gestão/direção – que são aqueles comumente envolvidos
nesse tipo de infração.
É justamente na aplicação deste dispositivo que surge o “impasse” hermenêutico que nos
propomos a analisar. Partindo do texto, tem-se, à primeira vista, uma previsão de estabelecimento de
multa base não muito distinta de outras sanções do direito administrativo sancionador e até mesmo
do direito penal. Aplica-se uma alíquota sobre uma base de cálculo. As agravantes e atenuantes estão
estabelecidas no art. 45 da Lei n
o
12.529/11
6
. No entanto, dois elementos do cálculo da sanção contêm
conceitos jurídicos indeterminados dando origem este conjunto de “impasses”.
O primeiro deles surge já na base de cálculo, qual seja a ideia de que o faturamento base
da empresa ou grupo a ser tomada para a multa é aquele obtido no ramo de atividade empresarial
afetado pela conduta no ano anterior ao processo administrativo. Ramo de atividade certamente
não é um conceito jurídico, mas, como já afirmamos alhures, é normal no direito da concorrência
6 “Art. 45. Na aplicação das penas estabelecidas nesta Lei, levar-se-á em consideração: I - a gravidade da infração;
II - a boa-fé do infrator; III - a vantagem auferida ou pretendida pelo infrator; IV - a consumação ou não da infração; V - o
grau de lesão, ou perigo de lesão, à livre concorrência, à economia nacional, aos consumidores, ou a terceiros; VI - os efeitos
econômicos negativos produzidos no mercado; VII - a situação econômica do infrator; e VIII - a reincidência” (Brasil, 2011).
162
ANDRADE, Diogo Thomson de; OLIVEIRA, Paulo Henrique de. Direito, economia e linguagem:
hermenêutica, direito administrativo sancionador e o “impasse” em torno da aplicação do
conceito de “vantagem auferida”. Revista de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 12, n. 2, p. 149-
173, 2024.
https://doi.org/10.52896/rdc.v12i2.1890
o preenchimento de indeterminações conceituais por recorrência a conceitos econômicos. Ocorre
que, neste caso, ramo de atividade empresarial também não é um conceito econômico (científico,
ao menos) e tampouco, como poderia ser o caso já que o objetivo é apurar o faturamento no tal
ramo, um conceito contábil. Diante desta indeterminação e da necessidade imposta pelo direito
administrativo sancionador de interpretar-se restritivamente a norma sancionadora e de respeito
à prévia cominação legal, o Cade procurou, via resolução, diminuir o espectro de discricionariedade
do intérprete com relação a esse ramo. Tal resolução basicamente lista um rol mínimo de ramos
de atividades a partir dos quais o intérprete, aplicando também o princípio da proporcionalidade
e com base nas evidências do caso concreto, determina o conteúdo deste ramo para cada caso ao
individualizar as penas.
Mas o problema principal do texto legal que dá origem ao confronto sistêmico não é a questão
do ramo (embora ela seja crucial para entender a divergência e possa, inclusive, fornecer um caminho
para solucioná-la sem alteração legal), mas sim a existência de outro conceito indeterminado e
com redação aparentemente incoerente ao resto do dispositivo. Diz a lei que a multa nunca será
inferior à vantagem auferida quando for possível sua estimação. À primeira vista, a existência dessa
locução no dispositivo ao lado de um critério de sanção bem mais objetivo (alíquota versus base
de cálculo resultando na multa) pode causar estranhamento até mesmo pois parece introduzir
um critério de piso ao mesmo tempo em que reconhece que nem sempre é possível estimar esse
piso. Uma das razões para tal fórmula poderia ser o fato de que a norma sancionadora, assim como
o tipo infracional, não se refere a nenhuma conduta específica, mas a todo espectro de atos que
podem ser imputados como infrações. Mas, como já colocado, o direito da concorrência tem uma
grande correspondência internacional, então o mais provável é que, de uma forma muito abstrata e
genérica, o legislador procurou sim estabelecer, para além da multa baseada no faturamento, uma
outra proxy para o cálculo da sanção em situações excepcionais, quais sejam, quando a multa parecer
extremamente desproporcional e de alguma forma se possa estimar qual vantagem indevidamente
auferida ou pretendida pelo infrator.
Essa seria, a nosso ver, a interpretação mais condizente com o direito administrativo
sancionador. Vale dizer, neste ponto, que a lei anterior – a Lei n
o
8.884/94 – já continha locução
semelhante a respeito da vantagem auferida, com a diferença que falava em “quando quantificável
no lugar de “quando for possível de estimar” (Brasil, 1994). No entanto, a existência da locução na
lei precedente nunca foi relevante pois a sanção era calculada com base em uma alíquota sobre o
faturamento bruto da empresa (e não sobre o ramo de atividade), o que fazia com que as multas
já fossem naturalmente altas e, na maioria dos casos, proporcionais. Some-se a isso o fato de que,
comparativamente, havia poucos casos julgados sob a lei anterior e as multas aplicadas objetivavam
em alguma medida um condão didático diante da “novidade” que fora a introdução de uma legislação
concorrencial com capacidade de enforcement.
O imbróglio surge de fato somente em 2016, já sob a égide da Lei n
o
12.529/11
7
-
8
. Após a
vigência da referida legislação, o Cade intensificou sua atividade repressiva sobretudo no que se
refere a cartéis, introduzindo melhorias e incrementos em sua política de acordos e em sua estratégia
de investigação ex ocio desse tipo de conduta, o que fez com que naturalmente mais casos fossem
7 Cf. Voto-Vista do Presidente Alexandre Cordeiro Macedo no Embargos de Declaração no Processo Administrativo nº
08700.008612/2012-15.
8 Todos os processos do Cade mencionados neste artigo podem ser consultados em: https://tinyurl.com/y7obr4z5.
163
detectados, processados e julgados. Paralelamente, houve também a introdução, via acordos a partir
de 2013, dos chamados compromisso de cessação, passando-se a exigir, além da cessação da prática
infrativa, colaboração com as investigações e uma contribuição pecuniária calculada no âmbito da
multa esperada. O resultado foi um crescimento significativo da aplicação antecipada de sanções via
acordo em concomitância com um maior número de condenação de casos de conduta, sobretudo
cartéis, e uma maior saliência do número de acordos de leniência firmados.
9
Ocorre que, neste mesmo período – que marcava a maturidade da política de combate a
cartéis iniciada ainda em 2003 – houve uma nova composição do Tribunal do Cade e a chegada
de novos conselheiros, dentre eles dois Conselheiros economistas, João Paulo Rezende e Cristiane
Alkmin
10
. Ambos, de maneira distintas, passaram a se preocupar com a maneira que vinha sendo
realizado o cálculo das multas e contribuições pecuniárias sobretudo no caso de cartéis. Segundo
os Conselheiros, ao se adaptar o ramo de atividade proporcionalmente ao mercado afetado pela
conduta e tomar-se apenas um ano de faturamento neste ramo para a base de cálculo da multa se
estaria aplicando sanções muito baixas, o que resultaria em reduzida capacidade de dissuasão dada
a punição subótima, com especial destaque para condutas que que haviam perdurado por um longo
período de tempo. A crítica também se dirigia à forma como o Cade vinha interpretando o conceito de
ramo de atividade, tomando por base os ramos de atividade da Resolução 03/2012, mas ajustando-
os conforme o mercado afetado pela conduta por razões de proporcionalidade, o que, na visão dos
Conselheiros, restringia demais o faturamento adotado como base, uma vez que a base de cálculo
consideraria apenas um ano desse universo de receitas auferidas sob a prática da conduta.
Muito embora o argumento econômico de ambos os Conselheiros economistas fizesse algum
sentido pensando em política de punição, sobretudo partindo de uma ideia de punição ótima, restava
claro, desde logo, que diante do texto legal e dos princípios de direito administrativo sancionador,
a alteração na forma de cálculo que vinha sendo aplicada na multa poderia retirar-lhe o caráter de
previsibilidade e objetividade, além de se basear em um conjunto de evidências teóricas de falta de
dissuasão enquanto, na prática, os números de condenações, acordos de leniência e compromissos
de cessação de conduta vistos de maneira conjugada demonstravam tendência oposta.
Nesse contexto, os demais Conselheiros respondiam ao argumento da falta de dissuasão
destacando que o critério adotado era o mais objetivo possível, baseando-se na proporcionalidade
para a definição do ramo de atividade, o que, no âmbito do direito administrativo sancionador,
conferia maior segurança jurídica ao cálculo. Essa segurança era reforçada pelo baixo índice de
revisões do método de cálculo pelo Poder Judiciário. Além disso, o critério objetivo proporcionava
transparência e previsibilidade, elementos essenciais para incentivar acordos de colaboração, cujo
sucesso, na época, já era amplamente reconhecido como uma medida eficaz e oportuna de resposta
estatal às condutas infrativas. Essa dinâmica também evidencia o conflito entre determinadas
aplicações de instrumentos de law and economics e a segurança jurídica, destacando a importância
de que modelos que busquem reformar instrumentos legais a partir dessas perspectivas dialoguem
com as fronteiras legais e os princípios constitucionais estabelecidos.
9 Números disponíveis em Anuários (2024) e Transparência (2024).
10 As discussões no julgamento do Processo Administrativo nº 08012.002586/2005-51, referentes ao caso de cartel
de GLP no Pará, relativas tanto à possibilidade de utilização da estimação de danos ou de vantagem auferida para cálculo de
multa, quanto à realização da estimação desses valores, inauguram, por parte dos dois Conselheiros citados, a divergência com
relação ao tema da aplicação de multas pelo Cade.
164
ANDRADE, Diogo Thomson de; OLIVEIRA, Paulo Henrique de. Direito, economia e linguagem:
hermenêutica, direito administrativo sancionador e o “impasse” em torno da aplicação do
conceito de “vantagem auferida”. Revista de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 12, n. 2, p. 149-
173, 2024.
https://doi.org/10.52896/rdc.v12i2.1890
Apesar de serem minoria, os Conselheiros João Paulo Rezende e Cristiane Alkmin mantiveram
suas teses nos casos concretos, acrescentando a elas uma perspectiva legalista. Nesse sentido,
passaram a questionar o cálculo por não seguir a determinação legal de considerar a vantagem
auferida como um piso para as sanções. Ato contínuo, com base em análises de jurisprudências de
outras jurisdições em relação ao tema
11
, os demais Conselheiros começaram a questionar a viabilidade
de calcular de maneira objetiva a vantagem auferida, uma vez que, ainda que se admita esse critério
como um piso, a própria legislação estabelece que ele deve ser utilizado apenas quando for possível
estimá-lo. Além disso, os Conselheiros trouxeram à discussão o fato de que a vantagem obtida em
decorrência de uma conduta nem sempre é quantificável e pode apresentar variações casuísticas.
Começou-se ali a construir, mediante interpretações sucessivas, a ideia de que a vantagem
auferida mencionada no dispositivo legal deveria ser utilizada como uma variável de controle: a
não ser quando a sua estimação fosse imediata – e, em alguma medida, mesmo nesses casos –,
dever-se-ia utilizá-la como um piso de comparação com o cálculo objetivo (alíquota * faturamento no
ramo no ano anterior) e, paralelamente, os elementos de vantagem ilegalmente auferida estimada ou
pretendida deveriam ser levados em conta como parte do critério de gravidade da sanção, na forma
do art. 45, da Lei n
o
12.529/11
12
. Os Conselheiros economistas, por outro lado, levantaram a questão
de que, como a Lei pede uma estimativa e não uma certeza, sempre seria possível estimar de alguma
maneira a vantagem indevidamente obtida.
Se extraímos o debate dos casos e condutas concretas para focarmos na operação hermenêutica
encetada na aplicação do dispositivo sancionatório, temos que o principal argumento dos Conselheiros
minoritários para alteração na forma de cálculo tem origem na análise econômica do direito, mais
precisamente em uma fórmula de Becker (1968). Por esta formulação, a pena tem que ser suficientemente
alta para que o agente não “precifique” sua punição futura e faça um cálculo de custo-benefício que o
leve a continuar infringindo. O modelo originalmente formulado por Becker foi revisitado e atualizado
por Harrington Jr. (2014), que acrescentou a importância da possibilidade de detecção no cálculo da
“precificação” feita pelo agente. Segundo essa perspectiva, quando a capacidade de detecção do ilícito é
alta, o peso atribuído ao tamanho da punição tende a diminuir. Como punições muito rigorosas também
têm um risco alto de não serem efetivas justamente por serem desproporcionalmente onerosas, o ideal
é se atingir um equilíbrio entre detecção e punição que torne a ameaça do enforcement crível e real,
o que geraria dissuasão
13
. Para além dos elementos já desenvolvidos por Becker (1968) e Harrington
Jr. (2014) na modelagem da relação risco/ação do infrator e na estrutura do enforcement, é necessário
também considerar a variável de manutenção judicial das decisões da autoridade. Esse fator adiciona
uma camada de complexidade à estruturação de um enforcement que busque alcançar esse ponto
ótimo de equilíbrio. Tal aspecto parecia ser pouco observado durante o período de impasse analisado,
destacando a necessidade de integrar essas dimensões para aprimorar a efetividade do mecanismo de
dissuasão e a segurança jurídica das decisões.
11 Para um resumo das discussões acerca das dificuldades de aplicação de multas com base em vantagem auferida
em outras jurisdições, v. Voto-Vista do Presidente Alexandre Cordeiro Macedo no Embargos de Declaração no Processo
Administrativo nº 08700.008612/2012-15.
12 Cf., nesse sentido o Voto-Vogal do Conselheiro Paulo Burnier no Processo Administrativo 08012.002568/2005-51.
13 É interessante sublinhar que os Conselheiros buscaram diferentes caminhos para o estabelecimento da vantagem
auferida, gerando cenários em que por métodos distintos, mas em um mesmo caso, chegavam a resultados bastante diferentes.
Neste sentido, ver itens 140 a 160 do Voto-Vista do Presidente Alexandre Cordeiro Macedo no Embargos de Declaração no
Processo Administrativo nº 08700.008612/2012-15.
165
Desde o início, ficou evidente que esse novo viés interpretativo se diferenciava em alguma
medida dos princípios do direito administrativo sancionador, que deveriam nortear a aplicação da
sanção no caso concreto. Isso ocorre, seja pela interpretação casuística e extensiva de uma norma
punitiva (como o conceito de “vantagem auferida”, que é aberto, mas que, mesmo sob uma perspectiva
econômica, não parece comportar a ideia de dano, por exemplo), seja pela interpretação com o único
e exclusivo objetivo de aumentar a punição, sem a devida oportunidade de contraditório específico
em relação à memória de cálculo.
Em termos da hermenêutica gadameriana aqui proposta, estes Conselheiros economistas
que formavam, à época, uma minoria, partiam de duas pré-compreensões, a saber, as ideia de
que (i) as multas aplicadas pelo Cade eram pouco dissuasórias; e (ii) a falta de aplicação da ideia
de vantagem auferida e a flexibilização do conceito de ramo de atividade como razões para esta
pouca dissuasão. No entanto, estas pré-compreensões teóricas não eram mediadas com a realidade
prática e o status de maturação do enforcement do Cade à época. Naquele momento, havia, como já
mencionado, uma consolidação da capacidade punitiva do Cade após a Lei n
o
12.529/11 com um efeito
claramente dissuasório crescente e de incentivo ao compliance (que pode ser medido, por exemplo,
pela análise conjunta dos dados de iniciação de casos, acordos de leniência, termos de compromisso
de cessação, recolhimento de multas e contribuições pecuniárias e julgamento final de casos de
conduta) (Anuários [...], 2024; Transparência [...], 2024).
Nesse contexto, embora seja saudável e até necessária uma discussão sobre a melhor
forma de considerar elementos como vantagem auferida, duração da conduta e a concepção de
ramo de atividade empresarial, com o objetivo de aprimorar o nível de enforcement, substituir de
forma abrupta as metodologias de cálculo que até então vinham sendo bem-sucedidas poderia
comprometer aspectos como previsibilidade, legalidade estrita, objetividade e ampla defesa. Isso
poderia, inclusive, resultar em efeitos indesejados, como a redução da capacidade de dissuasão, ao
desconsiderar elementos essenciais para a formulação de sanções de acordo com os princípios de
direito administrativo sancionador previstos na Constituição. Em outras palavras, a tarefa de traduzir
elementos do sistema econômico para o sistema jurídico, que deve necessariamente ser realizada em
conformidade com o mandato constitucional do Cade e com a consciência de que, embora envolva
aspectos econômicos, a decisão sancionatória é uma decisão estritamente jurídica e fundamentada
no direito de punir do Estado, torna-se fragilizada na medida em que se revela imprevisível, casuística
e carente de uma discussão específica, em contraditório, sobre os elementos incorporados ao cálculo.
Embora ambos os Conselheiros da minoria tenham mantido suas teses até o final de seus
mandatos, nos casos concretos ficou evidente que a tentativa de estimar a vantagem auferida para
o cálculo da multa se afastava da objetividade necessária para sua aplicação. Ainda assim, essas
divergências geraram no sistema jurídico um estímulo – isto é, em termos gadameriano, uma irritação
em pré-compreensões – para debates mais amplos. Os votos dos demais Conselheiros passaram a
abordar de forma mais direta a questão da dosimetria, buscando maior precisão. Isso impulsionou
discussões aprofundadas sobre como tornar as multas mais dissuasivas e como incorporar elementos
na dosimetria, utilizando agravantes e atenuantes para garantir uma punição mais proporcional.
166
ANDRADE, Diogo Thomson de; OLIVEIRA, Paulo Henrique de. Direito, economia e linguagem:
hermenêutica, direito administrativo sancionador e o “impasse” em torno da aplicação do
conceito de “vantagem auferida”. Revista de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 12, n. 2, p. 149-
173, 2024.
https://doi.org/10.52896/rdc.v12i2.1890
Iniciou-se, nesse período, uma discussão sobre a criação de um guia de dosimetria
14
, com o
objetivo de estabelecer um consenso em torno de questões como gravidade, boa-fé, situação econômica
do infrator, entre outras. No entanto, essa fase do Tribunal do Cade foi marcada por um embate entre
uma visão voltada para a análise econômica do direito e uma perspectiva predominantemente voltada
para a segurança jurídica, ainda que esses grupos não fossem explicitamente identificados dessa
forma. Esse antagonismo absoluto entre as duas abordagens gerou, por um lado, uma insegurança
que antes não existia em relação à aplicação das multas pelo Cade e, por outro, dificultou a construção
de consensos mínimos. Tal bloqueio impediu que, na linha do ciclo hermenêutico gadameriano, se
desenvolvesse uma compreensão mútua capaz de criar soluções que conciliassem o cumprimento
dos princípios do direito sancionador com uma atuação repressiva mais eficaz e dissuasória.
O debate que se iniciou em 2016 é renovado alguns anos mais tarde – a partir de 2019 –,
com o ingresso de novos Conselheiros, a saber Sergio Ravagnani, Luiz Homan, Lenisa Prado e Luis
Braido. Nesse período também, a conselheira Paula Farani, remanescente da composição anterior,
altera seu entendimento em direção também a defesa da aplicação da vantagem auferida
15
. Assim, a
questão da vantagem auferida como piso para multa retornou aos debates do Tribunal, dessa vez com
consequências mais impactantes dado que em algum momento os defensores do cálculo via vantagem
auferida obtiveram maioria
16
. A argumentação não difere muito da anterior, se diferenciando, apenas,
pelo fato de que a discussão passou a ser liderada não mais por Conselheiros economistas, mas sim
por Conselheiros juristas, Sergio Ravagnani
17
e Paula Farani
18
, notadamente.
Além de se valerem do argumento teórico da necessidade de maior dissuasão, na linha dos, já
à época, ex-Conselheiros João Paulo Rezende e Cristiane Alkmin, o que caracteriza essa nova defesa da
adoção do critério da vantagem auferida “como piso e como critério prioritário para se tentar estimar
a multa a ser imposta
19
é um apego textualista do dispositivo legal que prevê a sanção. Novamente,
os Conselheiros partiam da premissa de que é possível realizar estimativas em todos os casos e,
por isso, consideravam que a vantagem auferida deveria sempre ser utilizada como um piso para a
multa. No entanto, na prática, ou seja, na aplicação concreta do texto legal à situação sancionada,
poderia ocorrer um afastamento da objetividade do cálculo, resultando em uma abordagem mais
específica para cada caso. Esse aspecto, dentro do direito administrativo sancionador, pode não
estar totalmente alinhado com os princípios e garantias previstos na Constituição para o exercício do
poder punitivo do Estado. Além disso, observava-se uma diversidade de critérios utilizados, que, por
si só, poderiam não ser suficientes para uma estimativa precisa, especialmente na ausência de um
contraditório específico sobre os elementos considerados na dosimetria.
Esse ponto do contraditório é fundamental, pois trata-se de uma decisão jurídica sancionadora
e não de uma decisão econômica. O conceito de vantagem auferida é juridicamente indeterminado, e
também o é do ponto de vista econômico. Por exemplo, considera-se que, por ser base de uma punição,
14 V. nesse sentido, por exemplo, o documento de trabalho do Departamento de Estudos Econômicos do Cade (DEE/
Cade) nº 04/2020 (Kharmandayan, 2020).
15 V. Voto no Processo Administrativo nº 08012.009732/2008-01.
16 Mais especificamente entre julho de 2021 e março de 2022.
17 Para um resumo das posições do Conselheiro v. itens 161-169 do Voto-Vista do Presidente Alexandre Cordeiro Macedo
no Embargos de Declaração no Processo Administrativo nº 08700.008612/2012-15.
18 Como referência ao entendimento da Conselheira Paula Farani, v. Processo Administrativo nº 08700.008612/2012-15
e Processo Administrativo nº 08012.009732/2008-01.
19 Voto do Conselheiro Sérgio Ravagnani no Processo Administrativo nº 08700.008612/2012-15.
167
a vantagem auferida não corresponde a toda a vantagem gerada pela atividade econômica ilegal ou
abusiva realizada. Afinal, infrações à ordem econômica são atos empresariais no âmbito das atividades
regulares de uma empresa, e o que as torna ilícitas é a proibição de seu objeto ou a caracterização de
abuso, conforme operações interpretativas do sistema jurídico. Além disso, é evidente que, em várias
condutas, especialmente aquelas que não envolvem preço, a eventual vantagem não é quantificável,
e, portanto, a atribuição de uma proxy casuística, variável conforme a disponibilidade de dados em
cada situação a ser sancionada e conforme a capacidade de obtenção desses dados, parece não
ser compatível com os princípios do direito sancionador. Tanto é assim que o próprio Cade criou
critérios para o preenchimento do conceito de ramo de atividade em sua Resolução 03/2012 e adotou
explicitamente a fórmula constitucional da proporcionalidade na aplicação do cálculo baseado no
faturamento ao modificar a referida resolução por meio da Resolução 19/2017.
Diferente da primeira fase da discussão sobre a vantagem auferida, a partir de 2019 o debate
passou a ter um impacto mais amplo, indo além de uma simples divisão entre dois grupos (maioria
vs. minoria) e gerando o “impasse” sobre o qual este artigo se debruça. Nesse novo contexto, além
dos Conselheiros Sérgio Ravagnani e Paula Farani, os Conselheiros Lenisa Prado e Luis Braido
também passaram a adotar o entendimento de que a vantagem auferida deveria ser estimada de
forma prioritária como um piso para as sanções do Cade, em detrimento do critério de faturamento
no ramo de atividade. A primeira consequência mais evidente foi o aumento das divergências
sobre a dosimetria, o que, por sua vez, dificultava tanto a busca por consensos mínimos quanto o
desenvolvimento de uma construção hermenêutica mais evolutiva, capaz de abordar possíveis falhas
na dissuasão das atividades repressivas do Cade. Em segundo lugar, a falta de previsibilidade na
dosimetria das multas e o risco de decisões contraditórias – especialmente em momentos em que o
grupo defensor da vantagem auferida teve maioria, como após o término do mandato do Presidente
Alexandre Barreto e do Conselheiro Maurício Bandeira Maia, sem substituição imediata – impactaram
diretamente a política de acordos, criando desafios nas negociações e reduzindo os incentivos para a
apresentação desses pedidos. Por fim, a objetividade e a uniformidade nas decisões passaram a ser
pontos sensíveis, uma vez que, em casos concretos, a nova forma de cálculo revelava situações que
poderiam ser percebidas como desiguais.
20
Essa plêiade de situações contraditórias e a constante renovação do debate sobre a forma
de cálculo das multas a cada nova composição do Cade geram uma situação que pode ser vista como
incompatível com os princípios constitucionais que sustentam o direito de punir do Estado. A nosso
ver, mais do que adotar exclusivamente uma metodologia ou outra, é necessário fomentar um debate
mais amplo sobre o aumento da dissuasão, sem comprometer a objetividade e a previsibilidade da
atuação repressiva do Cade. Dessa forma, o “impasse” se revela na medida que, nos termos atuais, a
discussão tende a se renovar a cada nova composição, o que pode afetar a equidade e a segurança
jurídica necessárias para a legalidade estrita da atividade sancionadora. Em 2022, a chegada de novos
Conselheiros, como Gustavo Augusto e Victor Oliveira Fernandes, exemplifica como a composição do
tribunal pode influenciar o direcionamento do debate, trazendo novas perspectivas e contribuindo
para a evolução da abordagem adotada. O ideal, contudo, é que essa oportunidade seja utilizada
para promover uma evolução na atividade sancionadora sem a necessidade de optar exclusivamente
entre uma interpretação que priorize os princípios do direito administrativo sancionador e outra que
enfoque a finalidade do mandato constitucional do Cade, qual seja, a dissuasão.
20 V. por exemplo o Requerimento de TCC 08700.005016/2021-66 no Processo Administrativo 08700.003699/2017.
168
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hermenêutica, direito administrativo sancionador e o “impasse” em torno da aplicação do
conceito de “vantagem auferida”. Revista de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 12, n. 2, p. 149-
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Uma das formas de solucionar o impasse – dentre outros mecanismos explorados em seção
posterior – da “vantagem auferida” sem a necessidade de alteração legislativa envolve a adoção
de uma abordagem hermenêutica que concilie as diferentes perspectivas já presentes no Tribunal
do Cade. Em primeiro lugar, é fundamental reconhecer que a vantagem auferida pode ser utilizada
como um critério de gravidade da conduta a ser levada em consideração na dosimetria da multa.
Essa abordagem permitiria que o Cade estabelecesse a vantagem auferida como um elemento que
influencia a alíquota aplicada, sem necessariamente definir a vantagem como um piso fixo para
a multa. Esse critério poderia ser implementado de forma a garantir maior proporcionalidade e
adequação às circunstâncias específicas de cada caso, levando em consideração fatores como a
duração da conduta e o grau de culpabilidade dos envolvidos.
Além disso, é possível aprimorar a objetividade do cálculo das multas por meio da
regulamentação de critérios que reduzam a discricionariedade do intérprete ao determinar o ramo
de atividade. A Resolução 03/2012 do Cade já representa um esforço nesse sentido, mas é necessário
avançar na definição de parâmetros mais claros e específicos que orientem a delimitação do
faturamento utilizado como base de cálculo. Esses critérios podem incluir uma análise mais rigorosa
do impacto econômico da conduta sobre o mercado afetado, bem como a consideração de métricas
financeiras objetivas para garantir que o faturamento considerado seja condizente com a realidade
dos efeitos anticompetitivos observados.
Em suma, o “impasse” sobre o cálculo das multas é uma questão que pode ser solucionada
de forma hermenêutica, de modo a alcançar um consenso e uma aplicação mais abrangente do
dispositivo legal, assegurando tanto os princípios do direito administrativo sancionador quanto
a finalidade dissuasória das multas do Cade. Embora esse “impasse” não tenha até o momento
impedido o Cade de julgar e aplicar sanções, o antagonismo entre duas posições que não são
necessariamente excludentes pode gerar disfunções que coloquem em risco a própria eficácia da
atuação repressiva do Cade e sua capacidade de dissuasão. É importante destacar que tornar as
multas administrativas mais suscetíveis à revisão judicial, prolongar o contencioso em relação à sua
aplicação, e estabelecer critérios menos previsíveis e objetivos para o cálculo das multas esperadas
que orientam os acordos de cessação de prática, poderá, ao final, comprometer a efetividade da
atuação repressiva, enfraquecendo o elemento dissuasório, que é essencial para a política pública
subjacente à atuação do Cade.
6 POSSÍVEIS SOLUÇÕES HERMENÊUTICAS PARA O “IMPASSE” E A RECON-
CILIAÇÃO ENTRE OS SISTEMAS JURÍDICO E ECONÔMICO (OU ENTRE O
DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR E A ANÁLISE ECONÔMICA DO
DIREITO)
Como então, usando a hermenêutica jurídica, podemos, ao menos tentativamente reconciliar,
as diferentes visões acerca das multas do Cade para melhor cumprir a dupla finalidade de punir e
dissuadir sem perder de vista a necessidade de se cumprir com os ditames constitucionais do direito
administrativo sancionador?
O primeiro passo é estabelecer a compreensão de que a atividade repressiva deve ser vista
de forma integrada, ou seja, quanto mais objetiva e eficaz for essa atividade, menos suscetível a
questionamentos ou reversões, e mais ágil for a resposta da autoridade à sociedade, seja por meio
169
de acordos ou multas, maior será sua capacidade de dissuasão. O antagonismo na interpretação
do dispositivo que impõe as multas do Cade às pessoas jurídicas decorre, em parte, da redação
complexa e pouco clara do texto legal. Além disso, surge da percepção de que existem dois cálculos
possíveis inscritos, quando na verdade há uma série de fatores abertos à interpretação que precisam
ser objetivados, na medida do possível, em respeito aos direitos e garantias do administrado. Diante
desse cenário, propomos dois caminhos que não são necessariamente excludentes: um baseado na
estrutura normativa vigente e outro como uma proposta de alteração legislativa.
De lege lata, em contraposição a uma tentativa de estimação de vantagem auferida como piso
da multa a cada caso, dever-se-ia considerar essa vantagem como “pretendida” nos termos do art. 45
da Lei n
o
12.529/11, estabelecendo a partir dela uma proxy de maior ou menor gravidade da conduta
a ser levada em conta na estipulação da alíquota ao lado dos outros elementos do referido art. 45.
Note-se, aqui, a possibilidade de uma construção hermenêutica que admite tanto que a vantagem
auferida é um elemento de reprovabilidade da conduta, como que este critério pode ser generalizável
sem que se tenha que realizar estimativas contestáveis e casuísticas. No limite, a multa acabaria
empurrada para o teto ou piso da alíquota sobre o faturamento. Assim, salvo em casos em que a
vantagem indevidamente auferida seja calculável de imediato, o que a própria lei já admite não ser
a regra, a ideia de vantagem pretendida passa a ser um controle de gravidade a justificar, inclusive,
a aplicação da multa no teto. Nesse controle, elementos como o tempo de duração da conduta, a
consciência maior ou menor sobre a ilicitude, a capacidade maior ou menor de elidir o enforcement,
dentre outros, devem ser levados em conta.
Aliás, uma melhor definição sobre os critérios abertos do art. 45, especialmente se
consensual e estabelecida previamente em um guia, que, inclusive, estabeleça critérios de etapas
e de transparência da dosimetria e do cálculo, a permitir o contraditório, poderia ser um bom
ponto de partida para a solução do problema. Para além disso, o estabelecimento de hipóteses em
que as outras penas não pecuniárias (previstas no art. 38 da Lei n
o
12.529/11)
21
sejam tão ou mais
importantes do que a multa e que se pudesse realizar algum tipo de compensação na multa baseada
no cumprimento destas outras penas também poderia contribuir para uma melhor adequação da
sanção ao caso concreto. E, fundamentalmente, com vistas à dissuasão, uma melhor e mais acurada
consideração dos ramos de atividade em cada caso, bem como o estabelecimento de alguns critérios
mais objetivos de proporcionalidade que justificariam a redução do escopo destes ramos também
contribuiria para a solução do “impasse”, com a vantagem adicional de que esta discussão – ou até
mesmo a recorrência em casos extremos ao faturamento bruto nos termos do art. 37, § 2º
22
ou do
21 “Art. 38. Sem prejuízo das penas cominadas no art. 37 desta Lei, quando assim exigir a gravidade dos fatos ou o
interesse público geral, poderão ser impostas as seguintes penas, isolada ou cumulativamente: I - a publicação, em meia
página e a expensas do infrator, em jornal indicado na decisão, de extrato da decisão condenatória, por 2 (dois) dias seguidos,
de 1 (uma) a 3 (três) semanas consecutivas; II - a proibição de contratar com instituições financeiras oficiais e participar
de licitação tendo por objeto aquisições, alienações, realização de obras e serviços, concessão de serviços públicos, na
administração pública federal, estadual, municipal e do Distrito Federal, bem como em entidades da administração indireta,
por prazo não inferior a 5 (cinco) anos; III - a inscrição do infrator no Cadastro Nacional de Defesa do Consumidor; IV - a
recomendação aos órgãos públicos competentes para que: a) seja concedida licença compulsória de direito de propriedade
intelectual de titularidade do infrator, quando a infração estiver relacionada ao uso desse direito; b) não seja concedido ao
infrator parcelamento de tributos federais por ele devidos ou para que sejam cancelados, no todo ou em parte, incentivos
fiscais ou subsídios públicos; V - a cisão de sociedade, transferência de controle societário, venda de ativos ou cessação
parcial de atividade; VI - a proibição de exercer o comércio em nome próprio ou como representante de pessoa jurídica, pelo
prazo de até 5 (cinco) anos; VII - qualquer outro ato ou providência necessários para a eliminação dos efeitos nocivos à ordem
econômica” (Brasil, 2011).
22 “Art. 37, § 2º No cálculo do valor da multa de que trata o inciso I docaputdeste artigo, o Cade poderá considerar
170
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faturamento do grupo ou conglomerado – seria também feita sob contraditório mediante critérios
genéricos e abstratos previamente regulamentados.
23
De lege ferenda
24
, a solução hermenêutica ideal seria a retirada de conceitos jurídicos
indeterminados do dispositivo legal que determina a sanção, sobretudo daqueles que – como
vantagem auferida e ramo de atividade – nada significam também para o sistema da economia.
Dessa forma, a tentativa de estabelecer um critério de cálculo mais objetivo e auditável, com etapas
claramente definidas para dosimetria e individualização, que inclua, de alguma maneira, os elementos
internacionalmente reconhecidos para o agravamento de multas visando à dissuasão, poderia
simplificar o cálculo nos casos concretos. Além disso, esse critério forneceria maior previsibilidade e
objetividade, mantendo os incentivos para a dissuasão e, consequentemente, para os requerimentos
de compromissos de cessação.
Reduzir a discricionariedade do intérprete a elementos que possam ser avaliados e
interpretados conforme a ciência econômica subjacente à defesa da concorrência ou com base
nas evidências produzidas no caso concreto, ou seja, mediante uma hermenêutica que integre os
elementos do sistema econômico tornados juridicamente relevantes para a dosimetria da multa
parece ser o caminho mais seguro para assegurar a higidez do direito sancionador e a dissuasão
pretendida entre os agentes econômicos. Se esse novo dispositivo, mais objetivo, puder também
incorporar fórmulas claras, sem conceitos vagos, para contemplar a proporcionalidade da sanção
em relação a elementos de gravidade (como a duração da conduta, por exemplo) e à capacidade
financeira do infrator (como o estabelecimento de limites com base em conceitos contábeis ou
financeiros objetivos), a discricionariedade do intérprete é ainda mais reduzida. Além disso, permite-
se um contraditório específico quanto aos elementos do cálculo, fortalecendo a transparência e a
segurança jurídica no processo sancionador. Ainda, a partir da existência de um critério mais objetivo,
a atividade repressiva poderia cuidar mais de definir outros elementos mais importantes para a
punição, qual seja, os critérios e evidências necessários para a formação da culpabilidade (standard
de prova, dolo, culpa, grau de reprovabilidade de cada tipo de conduta) e que podem levar, dessa
forma, a um sistema mais coerente e com uma maior capacidade de dissuasão.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo, buscamos explorar as possibilidades da hermenêutica jurídica, partindo de
sua base teórica e chegando a uma aplicação prática do direito, com foco no direito concorrencial.
O objetivo foi demonstrar como a compreensão do direito como um sistema autopoiético,
com a Constituição servindo como mecanismo de acoplamento estrutural a outros sistemas e,
simultaneamente, incorporando a evolução comunicativa da sociedade, pode oferecer um caminho
seguro para a aplicação da hermenêutica jurídica na solução de questões jurídicas concretas. Em
termos práticos, este artigo propôs o uso de uma hermenêutica que vá além da mera subsunção,
o faturamento total da empresa ou grupo de empresas, quando não dispuser do valor do faturamento no ramo de atividade
empresarial em que ocorreu a infração, definido pelo Cade, ou quando este for apresentado de forma incompleta e/ou não
demonstrado de forma inequívoca e idônea” (Brasil, 2011).
23 Nesse sentido, o guia de dosimetria do Cade é um avanço, na medida que busca estabelecer parâmetros mínimos
para o controle do processo de multas no âmbito da ação sancionatória do Cade.
24 Nesse sentido, vale mencionar a iniciativa do PL 9238/2017 (Brasil, 2017), agora em trâmite no Senado Federal como
PL 1356/2022 (Brasil, 2011).
171
incorporando a análise dos conceitos jurídicos indeterminados, como o de “vantagem auferida”, e
considerando a necessidade de uma interpretação que integre as linguagens do direito e da economia.
Para enriquecer a análise, foram incluídos casos concretos nos quais o Cade enfrentou interpretações
divergentes sobre a base de cálculo das multas e sobre a aplicação de normas sancionadoras em
condutas anticompetitivas, o que gerou resultados punitivos heterogêneos.
Ao apresentar o “impasse” jurisprudencial do Cade na aplicação de multas e seu
desenvolvimento histórico no âmbito do processo de decisão do Tribunal e na atuação dos diferentes
atores que construíram e evolução de seus precedentes, destacamos como, em um microssistema
que depende profundamente da interação entre direito e economia, mediada pela Constituição e
regulamentada pelo direito, é fundamental preservar a funcionalidade do sistema jurídico no processo
de tomada de decisão. Isso deve evitar tanto o fechamento total do sistema jurídico quanto sua
abertura excessiva, permitindo assim o cumprimento das finalidades constitucionais no julgamento
de casos específicos.
Em uma tentativa de reconciliar posições aparentemente antagônicas, adotamos uma
abordagem hermenêutica construtiva, que reconhece a finalidade do mandato constitucional do Cade
de dissuadir condutas anticompetitivas, sem, contudo, restringir essa dissuasão a um único critério
de aumento das multas. Ao invés de correr o risco de desrespeitar os princípios constitucionais que
fundamentam e legitimam o direito sancionador, a dissuasão deve ser vista como o resultado de
um conjunto sistêmico de etapas que condicionam a atividade repressiva, incluindo fatores como
estabilidade das decisões, efetividade, celeridade e tempestividade.
Embora melhorias legislativas possam objetivar o cálculo das multas e apoiar a construção de
uma jurisprudência mais coesa sobre culpabilidade e reprovabilidade, o atual arcabouço legislativo
do direito concorrencial já permite avanços. Desde que superadas abordagens excessivamente
formalistas ou abertas, e construídos consensos mínimos em temas críticos, é possível desenvolver
uma regulamentação mais objetiva sobre etapas, elementos e conceitos utilizados na aplicação
de multas, garantindo a participação do sancionado por meio do contraditório. Um caminho que
reconcilie expectativas normativas de forma inclusiva, garanta transparência e previsibilidade, e
preserve direitos e garantias fundamentais, parece ser a única via segura para evoluir o sistema
repressivo do Cade em direção a uma maior dissuasão e eficácia.
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