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ANDRADE, Diogo Thomson de; OLIVEIRA, Paulo Henrique de. Direito, economia e linguagem:
hermenêutica, direito administrativo sancionador e o “impasse” em torno da aplicação do
conceito de “vantagem auferida”. Revista de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 12, n. 2, p. 149-
173, 2024.
https://doi.org/10.52896/rdc.v12i2.1890
existência para a hermenêutica jurídica (Gadamer, 2003, p. 400-449, 533-558).
Gadamer defende, assim, uma conexão entre a hermenêutica e a dogmática jurídica no papel
criativo do juiz, dado que este, em seu momento histórico deve trazer o texto para aplicação da
situação interpretativa em que se coloca. Para aplicar a lei deve-se conhecer, pois, não só o direito,
mas também o que determina sua aplicação e, mais do que isso, deve-se ter não apenas uma visão
fragmentária do texto legal, mas sim uma compreensão sobre o direito como um todo. Não basta,
para ele, buscar o sentido histórico de determinado texto para interpretá-lo conforme o sentido do
tempo de sua criação, mas sim realizar uma mediação que parte da compreensão do sentido original
para a necessidade de sentido a ser dada em cada caso concreto.
Da premissa fundamental de que tudo que pode ser compreendido é linguagem, assim é
também o texto jurídico, que é, ao mesmo tempo, base para a interpretação e o objeto que tem que ser
interpretado novamente a cada situação, com base nessa mediação entre as compreensões do sentido
original e atual daquilo que está disposto. Essa formulação hermenêutica permite suprir as imperfeições
da mera subsunção dogmática e, ao mesmo tempo, uma mutabilidade no tempo, dentro de certos
limites. É uma visão crítica do positivismo jurídico extremo, que se baseia única e exclusivamente na
lei, consubstanciando muitas vezes um textualismo fragmentado e carente de sentido.
Nessa linha crítica ao extremo textualismo do positivismo e seguindo a mesma tradição
de Gadamer (2003), utilizamos, também como base da hermenêutica jurídica de que aqui se trata,
a teoria estruturante de Friedrich Müller (2008)
4
. Müller introduz um importante instrumental
para a interpretação jurídica, sobretudo quando nos deparamos diante de lacunas ou conceito
indeterminados, os quais serão a chave para a compreensão do “impasse” na aplicação da lei
concorrencial a que o título desse artigo se refere.
Para o autor, o direito positivo se estrutura pelo texto normativo, mas também por aquilo
que chama de campo ou âmbito normativo, ou seja, pela ideia de um “programa” normativo. Nesse
contexto, o texto da norma é apenas a ponta do “iceberg”, um feixe inicial do sentido dessa própria
norma. A descoberta da norma passa pela busca de seu campo/âmbito normativo, isto é, dos aspectos
factuais do caso e dos aspectos relativos à sua produção e ao seu “encaixe” no direito como um todo.
Essa metódica estruturante se funda, em parte, na mesma ideia de que a interpretação pressupõe
uma compreensão do direito e uma série de pré-compreensões do intérprete, ambas devendo ser
mediadas segundo a situação concreta de interpretação, a qual está condicionada no tempo e na
história, bem como pelos fatos de cada situação concreta (Müller, 2008, p. 193-231).
4 Müller (2008) não é considerado um positivista jurídico no sentido tradicional, distanciando-se da tradição formalista
inaugurada por Kelsen (1998) e buscando superar a dicotomia entre positivismo e jusnaturalismo por meio da proposição de
uma visão que considera o direito não apenas como um conjunto de normas cuja validade se baseia em sua origem (como na
ideia de uma norma fundamental de Kelsen), mas como um processo complexo de construção de sentido. Nesse sentido, Müller
(2008) desenvolve sua teoria estruturalista com o objetivo de enfatizar que o direito não pode ser compreendido apenas como
um sistema de normas abstratas e estáticas, mas como uma estrutura que ganha sentido na prática, por meio da interpretação.
Müller (2008) argumenta que o direito é construído em um processo contínuo e não pode ser separado da realidade social
e dos valores que ele busca regular. Embora a crítica se direcione a um processo “neutro” de aplicação de normas gerais a
situações concretas como mero formalismo, a ideia do campo normativo não se distancia tanto da “moldura” da norma jurídica
proposta por Kelsen, dentro da qual existem diversas alternativas validades de aplicação da norma geral ao caso concreto. A
diferença principal está no fato de que, para Kelsen, essa operação deveria ser pura, sem qualquer interferência externa ao
Direito, enquanto para Müller, tal operação interpretativa necessariamente revela a historicidade e a realidade do contexto
social em que o intérprete está inserido.