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Concorrência Brasileira ao ato ilícito concorrencial. Revista de Defesa da Concorrência, Brasília,
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https://doi.org/10.5286/rdc.v10i2.981
AS RESPOSTAS PUNITIVA E RE-
PARATÓRIA PREVISTAS NA LEI
DE DEFESA DA CONCORRÊN-
CIA BRASILEIRA AO ATO ILÍCI-
TO CONCORRENCIAL1
The punitive and reparatory responses provided for in the
Brazilian Competition Law to the competitive illegal act
Micaela Barros BarceIos Fernandes2
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) – Rio de Janeiro/RJ, Brasil
RESUMO ESTRUTURADO
O artigo apresenta as três esferas de responsabilização previstas no ordenamento brasileiro – em
sede administrativa, criminal e civil – em resposta ao ato ilícito violador da livre concorrência.
Aponta que a três esferas de responsabilização são fundadas em diferentes pressupostos e oferecem
meios distintos e complementares de defesa da concorrência no ordenamento jurídico, integrando
um sistema complexo, porém unitário, com resposta punitiva (em sede administrativa e criminal) e
reparatória (por meio da responsabilidade civil).
Palavras-chave: Ato ilícito concorrencial; Violação antitruste; Responsabilização administrativa;
Responsabilização criminal; Responsabilização civil.
STRUCTURED ABSTRACT
The paper presents the three spheres of accountability provided for in the Brazilian legal system – in
administrative, criminal and civil elds – in response to the illicit act that violates free competition.
It is pointed out that the three spheres of accountability are based on different premisses and
offer different and complementary means of defending competition in the Brazilian legal system,
integrating a complex but unitary system, through a punitive response (administrative and also
criminal) and a reparatory response (through civil liability).
Keywords: Competitive illicit act; Antitrust violation; Administrative responsibility; Criminal
responsibility; Civil liability
Editor responsável: Prof. Dr. Luis Henrique Bertolino Braido, Fundação Getúlio Vargas (FGV/RJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6085-1446.
Recebido em: 05/05/2022 Aceito em: 01/11/2022 Publicado em: 14/12/2022
2 Doutora em Direito Civil pela UERJ. Mestre em Direito da Empresa e Atividades Econômicas e em Direito Internacional
e da Integração Econômica pela UERJ. Pós-graduada em Direito da Economia e da Empresa na FGV/RJ. Graduada em Direito pela
UFRJ. Advogada e professora no Rio de Janeiro. Membro da Comissão de Direito da Concorrência e da Comissão de Assuntos
Legislativos da OAB – Seção RJ. E-mail: mibbf@yahoo.com.br; Lattes: : http://lattes.cnpq.br/0535620934754551. ORCID: http://
orcid.org/0000-0002-4922-8220.
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Classicação JEL: K21; K41; K42
Sumário: 1. Introdução; 2. O ilícito concorrencial e sua tríplice resposta no
direito brasileiro entre o public e o private enforcement; 2.1. Responsabilização
administrativa; 2.2. Responsabilização criminal; 2.3. Responsabilização civil ;
3. Conclusão; 4. Referências Bibliográcas.
1. INTRODUÇÃO
Tendo o valor da livre iniciativa como um dos fundamentos da República, conforme o artigo
1º, IV, da Constituição (CR), o legislador constitucional tratou da ordem econômica3 no Título VII da
Constituição, estabelecendo nos artigos 170 a 192 o conjunto de normas, portanto de princípios e
regras jurídicas de organização e conduta, que orientam e regulam o comportamento dos agentes
econômicos submetidos à jurisdição brasileira.
Dentre os princípios lá elencados, a Constituição impôs a observância da livre concorrência
e a defesa do consumidor. Corolário da livre concorrência é a previsão de que a exploração direta
da atividade econômica pelo Estado é exceção, sendo regra sua atuação como agente normativo
e regulador, portanto deixando aos agentes privados a atuação direta. O Estado, em regime que
prioriza a atuação por agentes de mercado, exerce funções de scalização, incentivo e planejamento
(este último determinante para o setor público e indicativo para o privado).
Em sopesamento deste princípio, isto é, e justamente porque prestigiou a livre concorrência,
portanto o livre atuar dos sujeitos econômicos e sua autonomia privada, a própria Constituição
tratou de prevenir eventuais abusos no exercício das liberdades que possam comprometer os valores
que consagra. Anal, a liberdade é para todos. Se exercida ilimitadamente por alguns, outros podem
sofrer impedimentos ao seu exercício.
O legislador constitucional apontou expressamente valores que ao mesmo tempo temperam
e promovem a liberdade, em coerência com um sistema conformado aos objetivos fundamentais de
construção de uma sociedade livre, justa e solidária (CR, artigo 3º, I).
Assim, por exemplo, a Constituição elencou outros princípios que se somam ao da livre
iniciativa na regulação da ordem econômica, como o da função social da propriedade (artigo 170, III,
CR), do qual decorre, outrossim, a função social do contrato45. Como princípio aplicável a todas as
3 Sobre a ambiguidade da expressão ordem econômica, ver Grau (2000, p. 43 e segs.) No capítulo 2 de referida obra, o
autor, valendo-se da lição de Vital Moreira, aponta três sentidos possíveis: (i) como conceito de fato que representa o modo de
ser empírico de determinada economia concreta, isto é, a relação entre fenômenos econômicos e materiais; (ii) como conceito
sociológico, representa um conjunto normativo que compreende princípios e regras de qualquer natureza (jurídica, religiosa,
moral, etc) que dizem respeitam à regulação do comportamento dos sujeitos econômicos; e (iii) como conceito jurídico, a
ordem jurídica da economia, isto é, uma parcela da ordem jurídica, tomada como sistema de normas (princípios e regras
jurídicas, especicamente) que tratam do agir econômico, para indicar o modo que deverão ser as relações econômicas; este
último o sentido adotado neste trabalho.
4 Como defendido em outra oportunidade, o princípio da função social do contrato emerge na tentativa de
balanceamento da liberdade absoluta com a falta de liberdade (que estão muito relacionadas, pois, da liberdade absoluta de
uns decorre o risco da falta de liberdade de outros) (FERNANDES, 2019, p. 150).
5 A invocação legislativa do princípio da função social especicamente com relação aos contratos somente veio
a ser expressa no Código Civil de 2002, e destinou-se a conceber e promover uma autonomia atenta a outros interesses
individuais e coletivos sem, no entanto, suprimir a expressão individual, como feito pelos regimes totalitários. Miguel Reale,
jurista responsável pela comissão de juristas que revisou e elaborou o texto do Código Civil de 2002, já ressalvava desde sua
concepção que a função social foi instrumento criado com o objetivo de obstar abusos do privatismo, não devendo ser vista
como fonte de eliminação da autonomia privada e da força obrigatória do contrato (pacta sunt servanda) Reale (2003).
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relações negociais de conteúdo patrimonial6, impõe atenção de quaisquer contratantes atenção a
interesses sociais relevantes (TEPEDINO, 2009).
No mesmo sentido de preocupação de conjugar liberdade de agir com valores sociais, entre os
quais, interesses com repercussão econômica relevante, o legislador constitucional previu, outrossim,
no §4º do artigo 173 da CR, que a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação
de mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. Em outras palavras,
delegou ao legislador infraconstitucional, por meio de processo legislativo, o estabelecimento de
normas de repressão a abusos prejudiciais à livre concorrência.
Cabe lembrar a ressalva de que eventual dominação de mercados decorrente do regular
exercício da atividade econômica, portanto de uma eciência operacional do agente econômico, não
constitui ilícito. O legislador constitucional apontou a ilicitude de condutas abusivas que visem à
dominação, a eliminação (ou mesmo a redução, se interpretada a expressão em consonância com os
princípios da ordem econômica), ou o aumento arbitrário de lucros7.
Densicando o comando constitucional, além da promulgação de um Código Civil (CC) mais
atento à repercussão de atos de autonomia privada, indicando como geradores de responsabilidade
aqueles ilícitos ou abusivos (artigo 186, CC), foi aprovada a agora já decenária Lei 12.529, de 30-
11-2011 (Lei de Defesa da Concorrência ou LDC), que estruturou o Sistema Brasileiro de Defesa da
Concorrência (SBDC) e dispôs sobre a prevenção e repressão a infrações contra a ordem econômica
(artigo 1º, LDC).
A LDC não é a única norma que trata, no âmbito infraconstitucional, da ordem econômica,
sendo o Código de Defesa do Consumidor (CDC) por exemplo outra referência legislativa para
agentes públicos e privados, o que evidencia a multiplicidade de normas de impacto nas atividades
econômicas. Sem prejuízo, a LDC concentrou a normativa sobre a livre concorrência. Embora, a LDC
adote, ao se referir a atos de violação da ordem econômica por meio de ilícitos concorrenciais, a
expressão infração da ordem econômica, que sugere um alcance mais amplo do escopo da lei, seus
dispositivos são interpretados dentro da temática antitruste. Em outras palavras, nem toda infração
da ordem econômica está contida na LDC.
A LDC trata especicamente das condutas concorrenciais ilícitas no seu artigo 36, chamando-
as, como mencionado, de infração da ordem econômica. Segundo referido artigo, constituem infração
os atos que, independentemente de culpa8 e sob qualquer forma manifestados, tenham por objeto ou
possam produzir os efeitos de (i) limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência
ou a livre iniciativa; (ii) dominar mercado relevante9 de bens ou serviços (reforçando a ideia de
6 Sobre a incidência da função social do contrato a relações negociais de diferentes naturezas, relembre-se a
existência de controvérsia sobre o alcance da disciplina de direitos de obrigações e contratos. De um lado, colocam-se os
patrimonialistas, que admitem sua aplicação mesmo com relação a deveres de natureza não patrimonial, e de outro, os
não-patrimonialistas, que entendem que interesses existenciais, como os da personalidade, exigem tratamento normativo
diferenciado, de forma a não reduzir deveres de cunho não patrimonial à disciplina relacionada aos interesses patrimoniais.
A respeito do tema, ver Konder e Rentería (2012).
7 Efeitos estes que não são taxativos, na medida em que o §4º do artigo 173 é instrumental à concretização dos
princípios anunciados no artigo 170 da Constituição (FRAZÃO, 2017, p. 248).
8 Esta expressão suscita alguma controvérsia, que será mais bem tratada no item 1.1. adiante. Sem embargo, adiante-
se que a ressalva aqui feita pelo legislador se refere apenas às pessoas jurídicas, posto que deve ser colocada em cotejo com
a exigência da comprovação da culpa das pessoas físicas, conforme previsto no artigo 37, II do mesmo diploma legal.
9 Mercado relevante é conceito que compreende o espaço em que se travam as relações de concorrência ou em que
atua o agente econômico cujo comportamento está sendo analisado. Ele é determinado conforme pressupostos metodológicos
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que o que se quer evitar é a abusividade, o §1º do artigo 36 ressalva que a conquista de mercado
resultante de processo natural de crescimento, portanto fundado na eciência do agente econômico,
não constitui ilícito); (iii) aumentar arbitrariamente os lucros; e (iv) exercer de forma abusiva posição
dominante (conforme o §2º do artigo 36, presumida sempre que uma sociedade ou grupo controlar
20% ou mais do mercado relevante, podendo este percentual ser revisto pelo Cade para setores
especícos da economia, ou sempre que for capaz de alterar unilateral ou coordenadamente as
condições de mercado).
Após a denição do que seja infração da ordem econômica, o §3º do artigo 36 apresenta em
rol não taxativo algumas condutas que conguram hipóteses de ato ilícito, trazendo dezenove incisos
com práticas que violam a livre concorrência, que não excluem outras possíveis. A lista amplia as
hipóteses previstas no artigo 173 §4º da Constituição, em consonância com o comando geral de tutela
da livre concorrência contido no artigo 170, e deagra a tutela a interesses difusos e individuais em
sede tanto punitiva, esta que se desdobra nos âmbitos administrativo e criminal, quanto reparatória,
no âmbito civil.
2. O ILÍCITO CONCORRENCIAL E SUA TRÍPLICE RESPOSTA NO DIREITO
BRASILEIRO – ENTRE O PUBLIC E O PRIVATE ENFORCEMENT
A tutela aos valores consagrados pela ordem econômica brasileira se apoia em diferentes
instrumentos, inclusive mecanismos preventivos e repressivos de atos ilícitos, entre eles os ilícitos
concorrenciais.
A LDC, em seu título V, especíco sobre os atos ilícitos concorrenciais (na lei, como mencionado,
chamados de infrações da ordem econômica), prevê a responsabilização dos agentes econômicos
violadores das normas em vigor. Devem responder pessoas físicas ou jurídicas (em que responderão
também individualmente seus dirigentes e administradores, solidariamente), de direito público ou
privado, com ou sem personalidade jurídica (artigo 31, LDC).
Para os ns de garantir a tutela na prática, a responsabilização por infrações contra a ordem
econômica se dá tanto na esfera pública, com viés punitivo, em duas frentes – administrativa e
criminal – quanto na privada, com viés reparatório – por meio da responsabilidade civil.
Na esfera pública administrativa, cabe ao Conselho Administrativo da Defesa Econômica
(Cade) julgar, por meio do seu órgão judicante, o Tribunal do CADE (artigo 6º, LDC), com jurisdição em
todo o território nacional, sobre a existência de infração à ordem econômica e aplicar as penalidades
previstas na lei, decidindo os processos administrativos para imposição de sanções, ordenando
providências para cessação de condutas, entre outras atribuições (artigo 9º, LDC).
Na esfera pública penal, cabe ao Ministério Público, diante da vericação de que o ato ilícito
congura também crime, quando a conduta estiver prevista na Lei 8.137/1990, a persecução penal,
para ns de punição criminal.
Tanto em âmbito administrativo quanto criminal, os mecanismos de imposição das normas
de direito concorrencial são utilizados por pessoas de direito público, autoridades com competência
advindos da ciência econômica, e considera dois aspectos complementares: de um lado, o geográco (que identica o espaço
físico onde as relações de concorrência são consideradas) e de outro o material, ou mercado de produto (que considera o bem
ou serviço oferecido pelo agente econômico) (FORGIONI, 2014, p. 214 e segs.).
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punitiva que atuam dentro de suas margens de atribuições. Suas atuações conguram o chamado
public enforcement, ou persecução pública.
Finalmente, na esfera privada, cabe a qualquer vítima de um ato ilícito concorrencial a
possibilidade de buscar a tutela dos seus interesses. Pessoas físicas ou jurídicas contam com a
possibilidade de buscar em juízo a tutela de seus interesses, sejam agentes econômicos prejudicados
em seu segmento de atuação, sejam os agentes que se situam como destinatários nais de uma
cadeia de fornecimento de produtos ou serviços, os consumidores. Referida tutela pode se dar de
maneira preventiva, para obstar a prática de conduta que constitua infração à ordem econômica, ou
reparatória, para obter o ressarcimento dos danos que vierem a sofrer em decorrência de atos ilícitos
concorrenciais praticados pelo infrator10.
Desta maneira, também a ação de agentes econômicos privados contribui para o fortalecimento
do sistema brasileiro de defesa da concorrência. É o que a doutrina costuma designar como private
enforcement, ou imposição por meio de agentes privados do cumprimento de normas jurídicas11, ou
mais simplesmente, persecução privada.
Neste exato sentido é a dicção do artigo 47 da LDC, que estabelece que “os prejudicados, por si
ou pelos legitimados referidos no art. 82 da Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, poderão ingressar
em juízo para, em defesa de seus interesses individuais ou individuais homogêneos, obter a cessação
de práticas que constituam infração da ordem econômica, bem como o recebimento de indenização
por perdas e danos sofridos, independentemente do inquérito ou processo administrativo, que não
será suspenso em virtude do ajuizamento de ação.”
2.1. Responsabilidade Administrativa
Dentre os instrumentos para a contenção de abusos no exercício da liberdade de agir pelos
agentes econômicos, a ordem jurídica brasileira confere ao Estado o chamado poder de polícia, que
encontra a um só tempo fundamento e limite na lei e no princípio da proporcionalidade (JUSTEN
FILHO, 2015, p. 583).
Aqui desponta o chamado Direito Administrativo Sancionador, disciplina que, juntamente
com o Direito Penal, integra o ius puniendi genérico do Estado. Responsabilidade administrativa e
responsabilidade penal, são, portanto, mecanismos de dissuasão primária de condutas com potencial
lesivo a interesses tutelados em nosso ordenamento, ambas que se somam para o chamado public
enforcement.
Do ponto de vista do Estado, a diferença entre o ato ilícito penal e o administrativo não
necessariamente é identicada pela conduta, pela natureza do ato praticado, mas em função de
uma opção política do legislador (MACEDO, 2018, p. 2), que escolhe quais práticas lesivas a interesses
tutelados devem ter resposta no âmbito administrativo, e quais no âmbito criminal.
10 Aqui entendido, para ns de responsabilização civil, o dano concretamente sofrido por vítima merecedora de tutela
em seu legítimo interesse econômico, não se referindo, portanto, a lesões abstratamente consideradas. Para ns de reparação
da vítima, dano será o conjunto de efeitos concretos que se projetam na pessoa do ofendido e do seu patrimônio e que seja
merecedor de tutela. Sobre possíveis distinções nos conceitos de dano, recomenda-se Monteiro Filho (2016, p. 130 e segs.).
11 Cabe a ressalva de que no chamado private enforcement não apenas agentes privados atuam para imposição do
cumprimento da normativa concorrencial, na medida em que as ações de reparação podem ser ajuizadas também pelo
Ministério Público, na tutela de interesses coletivos.
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Tanto assim que há condutas idênticas consideradas ao mesmo tempo crime e ilícito
administrativo no Brasil – como o cartel –, que, no entanto, em outras jurisdições são apenas ilícitos
administrativos, ou apenas crimes.12
Em geral, para atos considerados mais graves, por opção legislativa, a conduta será tipicada
como crime, e para atos menos graves, ilícito administrativo, em ambos os casos a justicar sanções
– devidamente previstas em leis que as legitimam, como exigido em um regime democrático. As
sanções administrativas e criminais, operando como mecanismos que se coordenam na repressão
dos agentes econômicos, têm função essencialmente punitiva, com ecácia dissuasória na prevenção
de ilícitos.
A LDC nomeadamente enuncia a coletividade como a titular dos bens jurídicos por ela
protegidos (artigo 1º, parágrafo único), portanto indicando sua natureza difusa. Por conseguinte, o
Direito da Concorrência é seletivo, fazendo com que, no intuito de focar em atos que efetivamente
possam impactar o mercado como um todo, a análise da ilicitude em sede administrativa seja
realizada somente quando, nos termos do artigo 36 da LDC, os atos tenham por objeto ou possam
produzir os efeitos elencados em seus incisos I a IV.
Ou seja, se os atos praticados por agentes econômicos não tiverem por objeto ou não
tiverem o potencial de limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre
iniciativa, dominar mercado relevante de bens ou serviços, aumentar arbitrariamente os lucros, ou
exercer de forma abusiva posição dominante, a infração da ordem econômica não se congura.
Isto faz com que seja possível que haja um ato abusivo do ponto de vista do Direito Civil,
gerando efeitos lesivos para partes diretamente interessadas, congurando, portanto, base para
a responsabilização civil, se preenchidos seus próprios pressupostos, mas não necessariamente
gerando responsabilização administrativa.
Se, de um lado, certa seletividade no Direito da Concorrência que contribui para ltrar
situações que efetivamente geram responsabilização administrativa, de outro, a LDC não elenca
um rol taxativo de condutas. Pelo contrário, o §3º do artigo 36 esclarece que além das condutas
apontadas, outras podem caracterizar infração à ordem econômica, permitindo sua aplicação em
diversas situações.13
A abertura do tipo legal é reforçada pela previsão, no caput do artigo, que as infrações podem
se constituir por atos sob qualquer forma manifestados. A previsão aberta, que não é peculiaridade
da legislação concorrencial brasileira, acaba contribuindo para uma denição bastante elástica da
ilicitude (FRAZÃO, 2017, p. 257).
Além da tipicidade aberta, há outra característica do dispositivo que amplia bastante a
possibilidade de imputação do ilícito aos agentes econômicos. De acordo com o caput do artigo
12 Em exemplo da historicidade de qualquer instituto jurídico, e da consequente disciplina dinâmica em cada
jurisdição, tome-se, dentro do tema desta tese, a prática de venda casada, prevista como crime na Lei 8.137/1990 (que deniu
crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo), conforme a redação original do seu artigo 5º,
II, mas descriminalizada pelo artigo 127 da LDC, que a elencou apenas como ilícito administrativo, conforme o seu artigo 36,
XVIII.
13 Como ensina Frazão (2017, p. 256): “O mero fato de um agente econômico praticar um dos atos descritos na lei não
signica que tenha havido infração à ordem econômica, pois, ausentes os efeitos reais ou potenciais descritos no caput, não
que se cogitar de ilícito antitruste, ainda que a conduta possa ser considerada ilícita do ponto de vista do direito privado. Por
outro lado, práticas que não estejam expressamente previstas no §3º do artigo 36 poderão ser consideradas infrações à ordem
econômica caso seja demonstrada sua potencialidade lesiva sobre a livre concorrência”.
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36 da LDC, a infração da ordem econômica se congura independentemente de culpa do agente. A
redação parece ter sido assim construída para evitar que a responsabilização dos agentes casse
dependente da comprovação de dolo (FRAZÃO, 2017, p. 263), mas acabou dando margem a diferentes
interpretações.
Isto porque em sede de responsabilização administrativa, tendo em vista sua natureza
punitiva, todas as garantias de defesa que legitimam o uso da força estatal devem estar presentes,
de forma a evitar que o poder de polícia se torne arbitrário. Então, se o que há é um controle de
conduta, deve haver a possibilidade da vericação de sua reprovabilidade, ou seja, avaliação da
eventual violação de um dever de conduta determinado pela legislação pelo agente econômico. E, se
cabe tal avaliação, a responsabilidade é subjetiva14.
Sem embargo, a jurisprudência dominante no Cade, com base na previsão legislativa tal
como redigida, tem apontado a responsabilidade administrativa como sendo objetiva. Apesar da
literalidade do texto, e dos precedentes em julgados administrativos, cabe a ponderação sobre a
necessária análise da culpabilidade do agente, da reprovabilidade de sua conduta, que permite
inclusive a conclusão de inexistência de ilícito diante de inexigibilidade de conduta diversa (MACEDO,
2018, p. 12).
A objetivação da responsabilidade tem de fato pertinência como técnica de socialização de
riscos que é adequada no âmbito da reparação, portanto no campo do Direito Civil, pela necessidade
revelada, no curso da própria evolução do instituto da responsabilidade civil, de se encontrar
mecanismos que possam ser efetivos para tutela dos interesses das vítimas de danos injustos diante
de riscos cada vez mais frequentes e maiores na sociedade contemporânea15.
Todavia, já em outro âmbito, o da punição, a atribuição objetiva da responsabilidade por
ato ilícito a quem quer que seja, isto é, sem que haja algum juízo de reprovabilidade social sobre
a conduta analisada, portanto de culpabilidade, se agura bastante questionável em um Estado
democrático.
O tema da validade jurídico-constitucional da expressão independentemente de culpa
chegou a ser levantado na vigência da Lei 8.884/1990, que antecedeu a LDC e foi por ela revogada,
mas cujo caput do artigo 20 é idêntico ao do artigo 36 da LDC. O dispositivo foi questionado na
Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.094-DF, ajuizada pela Confederação Nacional da Indústria,
mas a ação acabou sendo julgada extinta sem exame do mérito com fundamento na ilegitimidade
ativa da entidade sindical, e também na (apontada) perda do objeto ante a revogação da lei – este
fundamento questionável, ante a reprodução da mesma norma na nova legislação, o que justicaria
a preservação do interesse na sua apreciação.16
Uma pena que o tema não tenha sido enfrentado em referida ADI 1.094-DF, o que contribuiu
para a permanência da controvérsia. A expressão “independentemente de culpa” inserida na norma
pode ser lida de distintas maneiras.
14 Em favor da subjetivação da responsabilidade administrativa, mas no contexto de violações ambientais, a 1ª Seção
do STJ já consolidou o entendimento de que a responsabilidade administrativa ambiental é subjetiva, exigindo-se, portanto, a
demonstração de que a conduta foi cometida pelo transgressor, além da prova do nexo causal entre a conduta e o dano. STJ,
1ª Seção, REsp 1.251.697-PR, Relator Min. Mauro Campbell Marques, j. em 12-04-2012, DJe 17-04-2012.
15 Sobre o caminho evolutivo e mecanismos de socialização do risco em sede de responsabilidade civil, permita-se
referir a Fernandes e Almeida (2021, p. 47-66).
16 STF. ADI 1.094-df. Rel. Ministro Celso de Mello, Tribunal Pleno (Plenário Virtual, j. 25/09/2020 a 02/10/2020).
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De um lado, é possível entender que cabe responsabilização administrativa objetiva, mas
não para ns de repressão do agente violador da norma, mas sim em caráter precaucional somente,
isto é, cabe a resposta administrativa, independentemente da análise da culpa, para ns de ordem
de cessação imediata de condutas lesivas aos valores tutelados pela LDC, de maneira a restaurar
as condições de concorrência violadas. Isto porque como a própria lei enuncia desde seu artigo
1º, a tutela promovida pelo SBDC é tanto preventiva quanto repressiva, cabe, portanto, em sede de
prevenção de riscos, a identicação da infração para sua imediata sustação em prol da coletividade,
independentemente de culpa.
Em outras palavras, por expressa previsão legal, a atuação da autoridade administrativa
pode se dar no âmbito punitivo tanto preventiva quanto corretivamente, ou seja, tanto pré-violação,
para evitar o risco de efeitos econômicos anticoncorrenciais, quanto pós-violação, para reprimir a
atuação dos agentes econômicos que desrespeitam valores consagrados em nossa ordem jurídica e
causam danos a outros agentes econômicos e à coletividade como um todo. Segundo tal perspectiva,
a responsabilização preventiva é também (embora não apenas) derivada da punitiva, e, portanto, em
sede administrativa, a responsabilidade poderá ser atribuída independentemente da vericação da
culpa do agente.17
De outro lado, é possível entender que a intenção do legislador ao consignar a expressão
“independentemente de culpa” no caput do artigo 36 da LDC, não foi, como um primeira leitura
poderia sugerir, afastar o exame da reprovabilidade da conduta, porque tal afastamento jamais seria
possível em sede punitiva (ainda que somente na via administrativa, e não criminal), mas sim afastar
a avaliação da culpa no sentido de “estado psicológico de consciência da ilicitude pelo agente” –
portanto, tendo sido utilizada a expressão culpa neste dispositivo no sentido que, no Direito Civil, se
atribui à chamada culpa subjetiva, o que não excluiria a necessidade da análise da culpa normativa
em sede administrativa.
Em esclarecimento: lembre-se que no âmbito civil o conceito de culpa passou por importante
transformação, acompanhando mudanças ocorridas no próprio instituto da responsabilidade civil. A
atribuição da responsabilidade (civil) já foi no passado mais dependente do conhecimento do estado
de ânimo do agente, de maneira que ao julgador se colocavam questões sobre consciência da lesão
ao direito de terceiros, a previsibilidade do dano, e sua reprovabilidade moral, todas submetidas a
elevada carga de subjetividade do intérprete.
Atualmente, após um longo percurso do instituto da responsabilidade civil no ordenamento
brasileiro, mesmo em sede de responsabilização subjetiva, portanto em que se deve provar a culpa
do ofensor (com fulcro nos artigos 186 e 187 do CC), a culpa passou a ser compreendida não mais
como um estado psicológico do agente de consciência quanto à ilicitude do seu ato, mas sim como
a violação de um dever de cuidado objetivamente considerado segundo padrões de exigência
praticados no mercado.
Para distinguir ambas as espécies de culpa, isto é, esta culpa objetivamente vericável,
portanto um “erro de conduta exigível, daquela referida pela doutrina como “estado psicológico
de consciência da ilicitude, ainda adotada no âmbito penal, ambas ganharam um sobrenome,
uma designação identicativa. Assim, a culpa objetivamente considerada é referida como culpa
17 A atuação preventiva tem tal força, que a mesma LDC trata não apenas das condutas ilícitas, objeto das considerações
trazidas neste artigo, mas também dos atos de concentração, com o m de evitar que movimentos estruturais em cada
mercado relevante acarretem efeitos econômicos anticoncorrenciais, ou seja, mesmo quando os agentes sob análise não
estejam violando qualquer regra de conduta concorrencial.
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normativa, ou também como culpa objetiva. E ela se distingue daquela que pressupõe a análise do
estado de consciência do ofensor, referida como culpa subjetiva, e que foi sendo abandonada na
interpretação civilística, embora ainda mencionada por doutrina e jurisprudência, ora por motivos
históricos, ora por desatualização do intérprete sobre mudanças normativas.
Embora no âmbito civil (reparatório), o abandono da culpa subjetiva faça bastante sentido,
no âmbito administrativo e no penal (punitivo), a investigação da culpa subjetiva pode ser relevante
em alguns casos, por exemplo para ns de cálculo da sanção punitiva, ainda que não dispense a
análise da culpa normativa.
Corroborando esta segunda linha de entendimento e forma de leitura do caput do artigo
36, o artigo 37, III, da LDC, expressamente prevê que o administrador responsável pela infração
estará sujeito à sanção administrativa que estabelece mediante a comprovação de sua culpa ou
dolo, portanto “do seu estado de consciência. Ou seja, há especicamente com relação à hipótese
abrangida no artigo 37, III, vale dizer, de xação da pena do administrador do agente econômico, a
expressa referência à necessidade de consideração de elementos subjetivos do sujeito responsável,
consideração esta que havia sido dispensada no artigo 36. Com efeito, a opção pelo legislador de
determinar a análise da “culpa subjetiva” em apenas alguns casos (para xação da pena) não afasta
a necessidade de análise da “culpa objetiva” em todos (para conguração do ilícito).
Concluindo, ainda que se reconheça a possibilidade de entender a expressão “independen-
temente de culpa” inserida no caput do artigo 36 da LDC, como uma dispensa à análise da reprova-
bilidade da conduta do agente em em sede de responsabilidade administrativa, com aplicação de
um regime de responsabilidade objetivo, parece mais razoável entender, conforme a segunda linha
de interpretação acima exposta, que no âmbito punitivo previstos na LDC, especialmente diante de
norma com tipicidade tão aberta, deve ser sempre feita a análise no mínimo da culpa normativa
do agente econômico. Isto é, deve ser feita a análise da reprovabilidade da conduta apreciada pela
autoridade administrativa conforme legítimas expectativas estabelecidas em consonância com pa-
drões de conduta praticadas, que envolvem inclusive padrões de racionalidade econômica, mas não
apenas, pois também (e sobretudo) padrões de conformidade jurídica vigentes em cada momento
histórico, conforme entendimento corrente e em consonância com valores positivados no ordena-
mento, sob risco de a sanção imposta pela autoridade administrativa se tornar arbitrária.
2.2. Responsabilidade Criminal
Ainda no âmbito da responsabilização punitiva, há, para além da possibilidade da aplicação
da sanção administrativa, também a possibilidade, com relação a certas infrões econômicas
consideradas pelo legislador mais gravosas à sociedade, de responsabilização penal.
Assim, algumas normas, como a Lei 8.137, de 27-12-1990 (que dene crimes contra a ordem
tributária, econômica, e contra as relações de consumo, com sua redação alterada pela própria LDC)
e, mais recentemente, a Lei 14.133, de 01-04-2021 (a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos,
que altera e revoga a Lei 8.666, de 21-06-1993, com vigência imediata dos novos dispositivos referentes
a crimes em licitações e contratos administrativos) se somam à LDC na responsabilização punitiva
dos agentes econômicos por atos ilícitos praticados em matéria de livre concorrência.
Por exemplo, com relação à formação de cartel, que se opera por meio de acordo explícito
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ou implícito entre concorrentes (seja para a divisão ou o controle do lado da oferta de produtos ou
serviços, por exemplo, via combinação no preço de venda, produção ou volume de comercialização,
seja pelo lado da demanda) e com capacidade de forte violação da livre concorrência, a infração
gera, além de punição na seara administrativa, também na criminal, posto que a conduta se congura
crime em nosso ordenamento, conforme previsto no artigo 4º, II, da Lei 8.137/90, sujeita à pena de
reclusão de 2 a 5 anos.
Se o acordo entre concorrentes se der no curso de processo licitatório para contratação pelos
órgãos integrantes da Administração Pública direta, autárquica e fundacional dos entes federativos,
a conduta será tipicada como crime de frustração do caráter competitivo da licitação, prevista no
artigo 337-F do Código Penal, introduzido pela nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos,
sujeita à pena de reclusão de 4 a 8 anos, e multa.
A apuração do ilícito criminal é feita pelo Ministério Público e autoridades policiais,
podendo o Cade solicitar o concurso de sua atuação desde a investigação em sede administrativa,
seja esta instaurada de ofício ou mediante representação fundamentada de qualquer interessado
(artigo 66, §8º, LDC). Independentemente da possível participação do Ministério Público desde a
fase de investigação administrativa, ele será sempre comunicado das decisões tomadas em sede
administrativa pelo Tribunal do Cade, para medidas no âmbito de suas atribuições (artigo 9º, §2º,
LDC), inclusive em sede criminal, que são várias18.
Embora no projeto de lei que resultou na redação nal da LDC e que alterou a Lei 8.137/90
houvesse a previsão expressa sobre a competência da Justiça Federal para apurar e julgar crimes
contra a ordem econômica, o dispositivo especíco foi vetado19, dando ensejo a alguma controvérsia
sobre o juízo competente, se comum ou federal, para julgamento de casos de crime contra a ordem
econômica.
Conforme entendimento rmado no STJ20, o julgamento do cartel compete, em regra, à Justiça
Estadual, o que não afasta a competência da Justiça Federal, desde que se verique hipótese de
ofensa a bens, serviços ou interesses da União, suas autarquias ou empresas públicas (artigo 109,
IV, CR), ou desde que, pela magnitude da atuação do grupo econômico ou pelo tipo de atividade
desenvolvida, o ilícito tenha a propensão de abranger vários Estados da Federação, prejudicar setor
econômico estratégico para a economia nacional ou o fornecimento de serviços essenciais21.
Na seara criminal, diferentemente da administrativa, não há controvérsia quanto à necessária
análise da culpabilidade do agente, sempre presente, diante da impossibilidade de imputação de
responsabilidade objetiva em ação penal, porquanto vedada no ordenamento jurídico brasileiro.22
18 O Ministério Público atua em todas as esferas de responsabilização. Na seara administrativa, um membro do MP
Federal é designado para emitir parecer nos processos para imposição de sanções por infrações, nos termos do artigo 20 da
LDC. Na seara criminal, cabe ao Ministério Público a persecução dos crimes contra à ordem econômica. Finalmente, na seara
civil, o MP tem legitimidade para a promoção de ações civis públicas, inclusive com intuito reparatório.
19 O dispositivo vetado da LDC tinha a seguinte redação: “Art. 120. A Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, passa
a vigorar acrescida do seguinte art. 16-A: ‘Art. 16-A. Compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes contra a ordem
econômica previstos no caput e nos arts. 5º e 6º desta Lei.’” Razão do veto: “O dispositivo faz referência aos arts. 5º e 6º da Lei
nº 8.137, de 1990, que, no entanto, estão sendo expressamente revogados pelo art. 127 do próprio projeto de lei.
20 STJ. HC 117169, 5ª Turma, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe de 16.03.2009.
21 Ainda sobre o tema da competência, o MPF editou em 2014 a Orientação nº 09, corroborando a competência federal
quanto a crime de formação de carteis interestaduais e internacionais. Documento disponível em http://www.mpf.mp.br/
atuacao-tematica/ccr2/orientacoes/documentos/orientacao-no-9.
22 O STF recentemente rearmou a impossibilidade de responsabilização objetiva em sede criminal, em sede de agravo
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Com relação às pessoas naturais, a condenação na seara criminal enseja, além da aplicação
da pena prevista conforme o tipo penal especíco para o ilícito apurado, a restrição automática de
algumas liberdades, notadamente o exercício da administração em qualquer sociedade enquanto
durarem os efeitos da condenação criminal (artigo 1.011, CC).
Sem embargo das peculiaridades da matéria, importante evidenciar a existência do caráter
punitivo compartilhado pelas sanções administrativas e criminais, portanto sua proximidade
ontológica para ns de política concorrencial. Tanto assim que o legislador infraconstitucional
previu que quando a conduta for sujeita à sanção tanto em sede administrativa quanto criminal,
estará sujeita ao prazo de prescrição previsto na lei penal (artigo 46, LDC).
Também evidenciando o caráter aproximativo das duas searas que integram o chamado
enforcement público, destaque-se que a lei concorrencial, com o intuito de promover o programa
de leniência, estabeleceu grande alcance dos seus efeitos, para permitir que a pessoa que cometa
ilícito antitruste, mas que colabora com investigações de maneira contundente, inclusive prestando
informações sobre outros envolvidos e entregando provas que comprovem a infração, possa ter
redução ou mesmo extinção de responsabilidades.
Em termos práticos, sob a ótica da responsabilidade administrativa, a celebração de
acordo de leniência com a autoridade antitruste faz com que a sanção administrativa possa ser
extinta ou reduzida (artigo 86, §4º, LDC), e, do ponto de vista criminal, impede o início da ação penal
relativa aos crimes praticados (artigo 87, LDC), suspendendo o prazo de prescrição até o cumprimento
completo dos termos do acordo. Conrmado o seu cumprimento na integralidade, também a sanção
penal se extingue.
Concluindo, o âmbito da responsabilização criminal a ilícitos de natureza concorrencial
no Brasil é um pouco mais limitado que o de responsabilização administrativa, somando-se o
primeiro ao segundo em casos nos quais o legislador entendeu que a maior gravidade da conduta
do agente, bem como os seus efeitos perante a coletividade exigem resposta mais rigorosa do
ordenamento. Por outro lado, reconhecendo a natureza próxima da responsabilização administrativa
e da criminal, a LDC prevê que o processamento para apuração daquela inuencia em alguma medida
o processamento para apuração desta, o que evidencia a unicidade lógica do nosso sistema jurídico,
que trata as duas espécies de responsabilização como respostas punitivas, e que devem, portanto,
correr em compasso.
2.3. Responsabilidade Civil
Para além dos institutos que, pela via da punição dos agentes infratores das normas de
direito concorrencial, tutelam interesses assentados em nosso ordenamento – o qual impõe, nos
moldes do artigo 170 da CR, a observância, entre outros princípios, ao da livre concorrência, da
propriedade privada, da função social da propriedade, da defesa dos consumidores, da repressão ao
regimental em habeas corpus julgado em favor de homem denunciado porque a sociedade que integrava prestou informações
falsas à Receita. Prevaleceu o voto divergente do Ministro Gilmar Mendes, do qual se destaca o excerto: “Não havendo uma
demonstração a contento nem do vínculo causal (tipo objetivo) nem do liame subjetivo entre autor e fato, como se viu,
estamos diante de um verdadeiro caso de responsabilidade objetiva. Nessa linha, importante destacar que a responsabilidade
objetiva na seara penal é vedada no ordenamento jurídico pátrio. A responsabilidade objetiva é inconstitucional, e não existe
espaço para tal modalidade de intervenção criminal no Estado Democrático de Direito. STF. 2ª Turma. AgRg no HC 182.458-DF,
Relator para o acórdão: Min. Gilmar Mendes. DJ-e 27/09/2021.
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abuso do poder econômico –, existe também a via da reparação, que pode ser buscada pelas pessoas
que venham a ser afetadas por atos em desacordo com os princípios gerais que orientam o exercício
da atividade econômica.
Ressalve-se a interpenetração entre o direito público e o privado, ambos que oferecem
caminhos diferentes, mas não resultam (como já se sustentou no passado, com base em modelos
de codicação do Estado Liberal) na cisão rígida dos campos de aplicação de cada ramo da ciência
jurídica para tutela dos interesses.
Assim, sem prejuízo dos diferentes instrumentos disponibilizados por cada disciplina
jurídica, órgãos do Estado podem também adotar instrumentos de direito privado para gestão de
bens e interesses públicos, e, também o direito público oferece mecanismos de tutela a interesses
particulares. Há um diferencial quantitativo, isto é, na carga de atenção oferecida pelas disciplinas
de direito público e privado a cada tipo de interesse, mas não qualitativo, ontológico.
Sendo nosso ordenamento jurídico um todo complexo, porém unitário, de incorporação de
valores centralizados na Constituição Federal e densicados na legislação infraconstitucional, não
é possível se cogitar que a incidência de uma disciplina afaste outra – o que há é interpretação
ponderativa em prol dos interesses que devem ser compatibilizados na aplicação do Direito23.
A responsabilidade civil por danos concorrenciais é mais um instrumento de ordenação
jurídica econômica, e se baseia no fundamento que, se de um lado nossa Constituição assegura
a liberdade aos agentes, de outro assegura igualmente a proteção aos interesses das pessoas
impactadas pelo exercício abusivo24 da liberdade, que causa danos à coletividade, no que atuam
os mecanismos de tutela do Direito da Concorrência, mas também a indivíduos, no que atuam os
institutos do Direito Civil.
Assim, as pessoas físicas e jurídicas que sofram com um dano injusto, afetadas por qualquer
ato ilícito, inclusive aquele de natureza concorrencial, contam com a possibilidade de buscar em
juízo a tutela de seus interesses, para além da eventual punição que será promovida por outros
caminhos. Neste sentido, Moraes:
A constitucionalização do direito dos danos impôs, como se viu, a releitura
da própria função primordial da responsabilidade civil. O foco que
tradicionalmente recaía sobre a pessoa do causador do dano, que por
seu ato reprovável deveria ser punido, deslocou-se no sentido da tutela
especial garantida à vítima do dano injusto, que merece ser reparada. A
23 A respeito, ver, entre outros: Sarmento (2003, p. 272-297); e Schreiber e Konder (2016), destacando-se destes últimos
o excerto colhido na página 12: “[...] a metodologia civil-constitucional opõe-se à clássica summa divisio do ordenamento,
cindido em direito público e direito privado, sobre a qual se constroem, na sociedade moderna, as rígidas separações entre
autoridade e liberdade, política e economia, Estado e sociedade, direito e moral, e, dentro do direito, a dicotomia entre direito
público e direito privado. Com o posicionamento da Constituição no ápice do ordenamento e o reconhecimento de que tanto
o chamado direito público como o dito privado devem servir à realização dos preceitos constitucionais, a distinção passa a
atender a uma nalidade mais didática do que ontológica, uma vez que ambos compartilham o mesmo fundamento e apontam
para uma mesma nalidade” (SCHREIBER; KONDER, 2016, p. 12).
24 Ressalvando-se desde a possibilidade de haver situações previstas no Direito pátrio em que, para ns de adequada
reparação à vítima de dano injusto, é possível, em mecanismo conhecido como de socialização dos riscos, a atribuição de
responsabilidade civil mesmo em hipóteses em que não há tecnicamente qualquer abuso, qualquer ato culposo, ou seja,
violador de um dever de cuidado objetivamente considerado. São as chamadas hipóteses de responsabilização civil objetiva,
fundamentadas no risco de certa atividade desenvolvida pelo agente econômico, ou simplesmente nos casos especicados
em lei, nos termos do parágrafo único do artigo 927 do Código Civil.
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punição do agente pelo dano causado, preocupação pertinente ao direito
penal, perde a importância no âmbito cível para a reparação da vítima pelos
danos sofridos (MORAES, 2006, p. 245).
Apesar de os objetivos e mecanismos de atuação de cada uma das três espécies de
responsabilização variarem, pode-se dizer que também a ação de agentes econômicos privados
contribui para o fortalecimento do sistema brasileiro de defesa da concorrência. Como já mencionado,
é o que a doutrina costuma designar como private enforcement, ou persecução privada da normativa
jurídica.
A tutela dos valores da concorrência por meio da persecução privada pode se dar de maneira
preventiva, para obstar práticas que constituam infração à ordem econômica, ou reparatória, para
obter o ressarcimento dos danos que vierem a sofrer em decorrência de atos ilícitos concorrenciais
praticados pelo infrator.
Com efeito, dentre os direitos e garantias fundamentais amparados em nosso ordenamento
para toda e qualquer pessoa, a Constituição prevê expressamente no inciso V do artigo 5º o direito à
indenização por danos sofridos.
Em adensamento de tal previsão, no contexto econômico se posiciona o artigo 47 da LDC, que
estabelece que os prejudicados, por si ou pelos legitimados referidos no artigo 82 da Lei 8.078/1990
(CDC), ou seja, os legitimados para defesa coletiva dos consumidores, poderão ajuizar, em defesa
de seus interesses individuais, ou individuais homogêneos, ações para a cessação de infrações,
bem como para o recebimento de indenização por perdas e danos sofridos, independentemente do
inquérito ou do processo administrativo.
Em que pese o reforço à garantia de indenização pela LDC, independente de referida previsão
qualquer pessoa vítima de ato ilícito causador de dano já poderia, com base nas regras gerais de
responsabilização civil previstas em nosso ordenamento, especialmente nos artigos 186, 187, e 927
e seguintes do Código Civil (CC), buscar a tutela de seus interesses injustamente prejudicados por
terceiros.
E aqui uma distinção das esferas de responsabilização, posto que os institutos de
responsabilização punitiva são sempre vinculados a fatos tipicados, portanto detalhada e
expressamente previstos na normativa aplicável (ainda que haja uma tipicidade aberta, como
acima mencionado), enquanto a responsabilização reparatória prescinde da descrição detalhada
da conduta ilícita para deagrar a atribuição de responsabilidade do agente causador do dano. Em
outras palavras, uma vez vericada a presença dos requisitos para atribuição da responsabilidade
civil, a conduta do agente causador de dano injusto será passível de responsabilização na seara cível,
ainda que não tipicada especicamente na legislação.
Em sede punitiva, diferentemente, a tipicidade é regra, e não comporta exceção. Como bem
representado no brocardo latino, nullum crimen, nulla poena sine lege praevia.
No âmbito da responsabilização civil, embora a redação do artigo 47 da LDC pareça direcionar
a via reparatória ao consumidor, que por sua vulnerabilidade é de fato o sujeito principal da tutela
do SBDC25, ele não é o único a receber tutela concorrencial, inclusive em sede de responsabilização
25 Neste sentido: “[...] há um intuito de proteção efetiva do consumidor enquanto sujeito vulnerável nas relações de
mercado por parte do SBDC. Essa tutela deve ser direcionada a efetivação de todos os direitos a eles garantidos, dentre eles
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civil.
Aliás, a própria LDC evita esta redução interpretativa ao prever, no parágrafo único do seu
artigo 1º, que a coletividade é a titular dos bens jurídicos por ela protegidos.
As tutelas punitiva e reparatória são independentes, ainda que deagradas a partir do
mesmo fato. Conforme reforça expressamente o artigo 935 do Código Civil, a responsabilidade
civil independe da criminal, ainda que seja possível o aproveitamento de provas. Desta maneira, é
perfeitamente possível que as ações cível e criminal tramitem simultaneamente em juízos diferentes.
Ressalve-se, sem prejuízo, apesar da previsão legal de independência, a inexistência
de independência absoluta entre as instâncias de punição e reparação, inclusive em razão da já
mencionada interpenetração dos ramos do Direito. Ademais, as atuações de diferentes autoridades
judicantes, ainda que fundadas em pressupostos diferentes, não podem partir de fatos distintos,
inclusive sob pena de incoerência sistêmica. Por isto mesmo, a parte nal do artigo 935 do CC
consigna que a decisão sobre a existência ou inexistência de determinada conduta, portanto de sua
materialidade, ou de sua autoria, tomada na esfera criminal não pode ser questionada na esfera
cível.
Evidenciando, outrossim, a independência relativa das esferas de atuação judicante, há
previsões de matéria cível nas normas de matéria criminal. Assim, o artigo 91, I, do Código Penal,
prevê que é efeito da condenação tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime;
o artigo 63, do Código de Processo Penal, prevê que a sentença condenatória transitada em julgado
poderá ser executada no juízo cível, e, em complemento, o artigo 387, IV, do mesmo diploma legal,
prevê que o juiz criminal deve xar o valor mínimo para a reparação de danos à vítima (sem prejuízo,
conforme a parte nal do parágrafo único do citado artigo 63, da liquidação para a apuração do
dano efetivamente sofrido).
Tais previsões não estão livres de controvérsias26, não sendo consideradas como autorização
para julgamento de ofício pelo juízo criminal. A jurisprudência do STJ27 se rmou no sentido de
que para xação de valor mínimo de reparação dos danos morais ou materiais deve haver pedido
expresso (pela vítima ou pelo Ministério Público), e ser oportunizada a defesa pelo réu, sob pena de
violação ao princípio da ampla defesa. Sem embargo, a autorização legislativa abre mais um caminho
para os interessados na reparação28.
Embora as diferentes espécies de responsabilização possam ser respaldadas em instrumentos
de tutela que sejam complementares, de certa forma, nem sempre assim sucede, pois pode ocorrer
de o enforcement público atrapalhar o privado, ou vice-versa.
Ou seja, ao mesmo tempo em que a atuação dos órgãos responsáveis pela punição pode
contribuir para apuração dos fatos e imputação da respectiva responsabilidade civil, a atuação por
entes estatais pode atropelar a ação privada.
a reparação individual dos danos sofridos em razão de infrações à ordem econômica. Tanto é assim que a Lei nº. 12.529/2011
previu expressamente em seu artigo 47 a possibilidade de reparação de danos decorrentes de infrações a ordem econômica
(CAIXETA, 2013, p. 85).
26 A respeito, ver, por exemplo, Pinheiro (2010); e também Dorigon e Alécio (2018).
27 Conforme entendimento xado pela 5ª Turma do STJ no AgRg no REsp 1.483.846-DF, Rel. Ministro Reynaldo Soares da
Fonseca, julgado em 23/2/2016, DJe 29/2/2016.
28 STJ. AgRg no REsp 1.483.846-DF, 5ª Turma. Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 23/2/2016, DJe
29/2/2016.
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Exemplo de diculdade na compatibilização de interesses se revela no julgamento pelo
Tribunal Regional Federal da 4ª Região no Agravo de Instrumento nº 5039527-89.2018.4.04.0000/PR,
em que foram partes a Petróleo Brasileiro S/A – Petrobrás e a Construtora Norberto Odebrecht S/A e
outras, com participação da União Federal e do Ministério Público Federal como interessados.
Em ação cautelar ajuizada pela Petrobrás em 2016 para garantir o direito ao ressarcimento
de danos sofridos em decorrência de atos de improbidade, a autora havia obtido o bloqueio de
parte dos bens da Odebrecht. Todavia, a liminar concedida foi revogada em outra decisão judicial
pelo TRF, posteriormente agravada pela Petrobrás. Apesar de a ação ter sido proposta para tutela de
um interesse privado da Petrobrás, o tribunal decidiu em Fevereiro de 2019 por impedir o bloqueio
de bens das companhias que constam do polo passivo da ação, porque elas celebraram acordo de
leniência com a União29.
O mesmo pode ocorrer em sentido oposto, isto é, ao mesmo tempo em que a atuação de par-
ticulares pode contribuir para o fortalecimento do sistema de concorrência, o chamado enforcement
privado pode também desestimular os infratores a tomarem parte em um dos instrumentos mais
utilizados pelo enforcement público, que é o programa de leniência.
Isto porque os infratores podem ser desincentivados a seguir adiante em qualquer programa
de colaboração junto à autoridade concorrencial, diante da possibilidade de, com a celebração de
acordo com o Cade em que devem reconhecer o ilícito e sua autoria, assumirem um risco aumentado
de responder a ações de indenização perante as vítimas do ato ilícito.
Sem embargo dos desaos na composição de interesses, a indenização deve ser sempre um
remédio disponível aos prejudicados, em cumprimento de garantia constitucionalmente assegurada
em nosso ordenamento.
3. CONCLUSÃO
Embora o valor da livre iniciativa, como fundamento da República que é, assegure o exercício
da autonomia privada aos agentes econômicos, permitindo-lhes o exercício de sua liberdade
econômica, justamente porque de um lado prestigia a livre concorrência, o próprio ordenamento
jurídico de outro lado previne eventuais abusos no exercício das liberdades que possam comprometer
os valores que consagra, oferecendo resposta aos atos que acabem por violar a ordem econômica
brasileira, caracterizando-se como ato ilícito de natureza concorrencial.
O Direito brasileiro apresenta, então, resposta em três âmbitos, dois cuja função prioritária é
sancionatória, a saber, o da responsabilidade administrativa, apurada pela autoridade administrativa
de concorrência, o Cade, e o da criminal, em que o processo para apuração do crime e imposição
29 Neste caso, esclareça-se, não se trata de apuração de infração concorrencial, mas sim de ato de improbidade
administrativa, e o Cade não tomou parte do acordo. As celebrantes foram a Controladoria Geral da União (CGU) e a Advocacia
Geral da União (AGU), no âmbito de suas competências. Mas o exemplo é pertinente porque se aplica perfeitamente ao que se
quer destacar, vale dizer, o conceito da autonomia dos interesses tutelados no ordenamento, no sentido de que o acordo de
colaboração assinado pelo infrator com um órgão da Administração, ainda que possa considerar eventuais direitos de terceiros
(por exemplo, na concessão de desconto no valor a ser recolhido à Administração pública em virtude de indenizações feitas
a particulares prejudicados pela prática ilícita) não tem o condão de dispor sobre estes direitos. Apenas os próprios titulares,
por meio dos instrumentos de tutela de que dispõem em nosso sistema jurídico, poderão decidir se e como transacionar a
respeito de seus direitos, eventualmente renunciando a parte ou à totalidade da indenização pelos prejuízos sofridos, esta
que não se confunde com a punição que compete ao Poder público.
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FERNANDES, Micaela. As respostas punitiva e reparatória previstas na Lei de Defesa da
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https://doi.org/10.5286/rdc.v10i2.981
de pena corre perante o Judiciário, e um terceiro cuja função prioritária é ressarcitória, o âmbito da
responsabilização civil.
Este trabalho buscou apontar brevemente referidos âmbitos de responsabilização, ponderando
que ainda que todos sejam destinados a densicar os valores consagrados na Constituição, se
baseiam em diferentes pressupostos, e priorizam, cada um por seus próprios mecanismos, interesses
especícos, exigindo interpretação que deve ser atenta, a um tempo, à independência das esferas,
contudo também à sua correlação e inuências recíprocas.
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COMO CITAR ESTE ARTIGO:
FERNANDES, Micaela. As respostas punitiva e reparatória previstas na Lei de Defesa da Concorrência
Brasileira ao ato ilícito concorrencial. Revista de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 10, n. 2, p. 64-80,
2022.